28.12.05

"Não quero continuar uma estória que já deu tudo o que tinha a dar..."

Quando o escritor desiste de criar não há mais nada a fazer. Mesmo escondendo mesas com propostas e sapatos dançáveis em cima. Um pacto entre editores não era mal pensado. O Ana [nome de cão] sai de Outono em Pequim de Boris Vian e ressuscita no próximo romance de Mia Couto. A mulher do primeiro homem a cegar abandona as páginas de Saramago para iluminar os versos de António Ramos Rosa. Nada a fazer.
A culpa é do leitor, se o houver. Caso contrário volta a ser de quem pinta.

- As estórias são crias das páginas em branco, meu amor, não têm fim.

tela: La Promenade; August Renoir

11.12.05

Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de sevidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre


(É oficial e irreversível: estou/sou/ando alegre)

29.11.05

"o sol é um arco-íris, não é noite nem dia"

Aproximaram-se porque partilhavam cinzeiros. É melhor termos cuidado, advertiu ela. Diz aqui que faz mal, está aqui escrito que mata, que nos torna demasiado dependentes da vida.
E apaixonaram-se.

4.11.05

Falho sempre visitas à lua

Pingos de chuva contados a cigarro. É como andar de carro, amar - é preciso travar. É como seguir caminhos: vais no teu, esperança falsa, falha-me a mão. É como ficar num buraco com dus pedras de gelo no cérebro.
Acendo outro. Chove. Apetece mastigar o tempo, triturá-lo com uma matilha de motosserras gramaticais, uma febre de vocábulos enraivecidos. É agressiva a viagem dos que ficam, dá frio, faz não querer ninguém. A robustez da teia. Não saio daqui sem uma pequena morte, renascimento de nicotina, raíz rompendo nas trevas, manchas podres nas folhas, nos braços, no corpo, pontos negros nos olhos. Não há lua nem lado nenhum para a imobilidade, depressão de árvore, noites em negro enleadas com fitinhas de sangue, como prendas.
Faz não querer, faz um homem com lágrimas. Estradas sem mim, miragens inaladas - nem lua, nem luz, nem lume. Falta a mão, apetece chover - febre de um manco - sobra em cinzas. É como insistência por afogamento.
Não há visitas no buraco.

27.10.05

País

No país onde as árvores saltam e os lobos estão pregados ao chão nunca nevou.
Todos os animais de quatro patas abanam a cauda e, às vezes, ficam sem pêlos - nas mais demorada visitas do vento. Dos pêlos soltos fazem-se cadernos mas as árvores nunca escrevem. Preferem as cantigas dos saltos à corda e, no Verão, o calor dos casacos de cabedal.
Às vezes choram e lá cai uma ou outra carta de amor.
Há para lá também muitas ovelhas que, por questões éticas de higiene, largam sempre as suas caganitas junto aos troncos dos lobos. Faz pena à vezes ver a apocalíptica chuva de dentes que, invariavelmente, ocorre antes de cada tempestade de uivos.
Os pássaros-bebé, com ninho nas unhas dos lobos, erguem a cabeça para o céu pilriando inveja das cobras-voadoras.
Limitam-se a comer as cartas platónicas que, não raras as vezes, caiem no vazio. Isso de as comerem é um quase-sonhar com o bico. Piu!

De longe a longe há um furacão que vem do mar. Chama-se homem, tem consequências devastadoras porque mata sempre aos milhares, mas é em tiros para o ar que o fenómeno natural é especialista. Uma mancha de cobras morre, caindo como cadáveres e enrolando-se no pescocço dos lobos. Há bichos que têm tantas víboras no pescoço que mais parecem aviões prontos a descolar. Sonham com isso. Antes que o vento chegue e limpe tudo, como sempre faz. Já está. Mas só de cinco em cinco anos aparece um homem, o que permite que os répteis se multipliquem a um ritmo suficientemente eficaz para que tape o sol.

Sempre que uma flor brota, começa a chover e o problema fica resolvido. Morte por afogamento. Dentro dos rios vivem os cães, para se protegerem dos fetiches das árvores. Gostam de animais puras, as raízes famintas. E os cães não sabem do que gostam, por serem descendentes da transparência.
Sempre que há um rugido é hora do recolher obrigatório das sombras e o dia fica branco. Tão iluminado que tudo cega. Dura meia-hora. E é o tempo que os lobos ganham para se fingirem livros, vagueando do buraco em buraco e dando marteladas de picareta nas árvores.

26.10.05

"Pensa como eu", disse-me um homem,
"Ou és abominavelmente perverso";
"És um sapo."

E depois de pensar nisto,
Disse-lhe, "serei, então, um sapo."

Stephen Crane

18.10.05

classificados - café novo

A cada seis nódoas de tinto:
uma metáfora, um patinho morto, um palito de pernas para o ar. a cada risco de vinho na testa.

1.
Tudo começou na festa de aniversário da Vergonha, como se acontecesse nos abortos da sombra. O bolo era alimentado por energia eléctrica mas não comia ninguém. Nos pouco lúcidos segundos de luz cuspiam-se as travessas, grávidas de porcos vivos e sapateiras como molho de petróleo. Erguiam-se fósforos acesos em ritual de sede. A negra Vergonha, coleccionadora de estórias, escondia a uva esmagada (fugia dos fósforos) (apaga-os com a língua). E o petróleo quase lume, de tanto tesão. O calor da chama conduz a boca até ao vinho. Sabes dele, malte de quê, dá-me um bocadinho. Meninas com cebolas nas mãos e lágrimas nos olhos corriam para braços, tropeçavam antes do aperto (corpo-contra-corpo) e meninas com sangue e cebolas picadas pelo corpo abraçavam. Mas, sobretudo, queriam beber. Elas e os ninhos de homens com pernas, que aplaudiam a vergonha na súplica por um copo. Vinte e sete séculozinhos acabadinhos de fazer e toda uma vindima empacotada no desejo. As mãos recuavam, subtraíam factores de euforia, tremiam com a ausência de fumo. Dedos no cristal.
Finalmente espuma a rasgar canecas. Todos os homens desenrolam a sua tromba de elefante e sugam tudo. Os que não tinham tromba lamberam os copos poupando trabalho à doméstica que só limpou.

2.
Uma criatura de lata, com três pernas e uma gaiola de flores no antebraço direito, bebia através da guitarra clássica. É um gesto: vermelho despenteado para dentro do corpo - lugares fermentados, umbigo à mostra, bocas que o reconhecem como torneira. Há quem escreva nos sofás, palavras e buracos na pele. Vinho lá para dentro. Há quem se engane nos furos e se esconda nas palavras. Amo-te. Vem comigo. Estende-me esse olhar. És verde. Escolhem mal, por engano.
Vergonha já não está na sala. Por mais forte que seja a fechadura há sempre janelas abertas, tocas de ratos, canos de ventilação. Vergonha não está. Acabou de sair. Está frio, é um dia como os outros. A Vergonha é um exercício para sóbrios. Mas as velas vertem vinho.

6.10.05

a vulnerabilidade

um cãozinho na trela da dor de costas. O chão efregado com força, infectado. Etão todos doentes de querer andar. Em círculos que ladram, farejam e apertam - cauda na erosão dos sonhos. Olha como saltitam cegos de mãos. Como já nem querem brincar com os copos. Em círculos que apertam como os quisessem afogar.
não sei com que direito correm, de chinelo calejado pelo pé, mala amarrada ao ombro. Num passo de cada vez, várias vezes apressado. Num salto de cada vez, várias vezes até cair. Olhar de medo que morde, de mimo. Seria assim o nosso abanar de cauda, se a tivéssemos - um olhar com dentes afiados, deslocados da boca para o frio. Cegos de braços quentes, do movimento sorridente de coçar o corpo, ajeitar a blusa, enrolar o cabelo. Círculos como se quisessem voar. Garrafas de perfume abertas em prateleiras de sonho.
o cabelo cresce com sombra, esvoaça o chão das patas com pormenores de futuro. Sóis circulares - incêndios apertados - asfixias de amanhãs; infecções.
(uma vez pus um ponto final no dia e começou a chover)
quantas bocas neste dia dos que gritam?

28.9.05

15.9.05

Regresso; não-regresso

Não sei se árvore, não sei se sal, não sei se fumo. Nas ondas do abraço te trepo - a tua saúde pontiaguda, ou janela azul, ou lezíria mental.
Não sonho se fico, não sonho se livro-fechado, não finjo se sonho. É a verdade.
E, no entanto, fumega.
Eu era total. Bebia dos barcos que te atravessavam os olhos; unicórnios com velas, o vento, círculos de fogo; não dormia. Não sei se ramos estalavam antes de me fintares pelas flores do sono. Árvore seca, talvez, no vermelho da terra, do vermelho sem estrada. Do trilho de um amor que não digo porque não é da natureza mofa deste dardo sem alvo; a palavra subterrânea; sem aquedutos de luz.
Não sem sal, não sei se vale o que te sonho, não sei explicar e tal. Eras distante, mas vital. Caminhas descalça como se já não houvesse mais vinho por pisar; tanto bebido; bebemos tudo? Lembras-te como engolíamos o azul para que não nos fugissem as nuvens?
E, no entanto, queima.
Os degraus são demasiado duros para dobrar, ficam mais pesados por cada lata que cai; pedra impermeável com buracos de lágrima.
Não sei se luto, não sei se branco de desistir. Bala de pânico, canudo apontado à testa, revolver faminto - sistemático-nulo.

25.8.05

Para que escreves homem da dor?
o caminho é estreito e os batedores municipais já estão fartos de o avisar:
nem para escrever nem para cagar. Na via pública não te deixamos sentar.
E ele: olha: lê o que escreve em voz: era como se cagasse - era merda que escrevia.
Daquela que faz chorar e sorrir
e depois se rasga.
por lei.

9.8.05

Esta é uma profissão filha da puta!
Roupa suja pelo pó, pelo verniz, por todos os inflamáveis que partilham o ar. Não é para respirar. Usa a máscara para que não morras já. Móveis para trás e para a frente. Aqui trabalha-se, há mesmo quem trabalhe todo o ano e é bom que se saiba. Quem chegue ao fim do dia e se contente com um chuveiro. Com um cigarro fumado À pressa. Livros ler? E o tempo para cozinhar, quem o inventava. Depois há a louça, a roupa, oferecer uma mão carinhosa (e só se tem duas!) a cada filho. Amo-vos pai e mãe. Amo-vos. Batalham tanto por mim. E sabe-vos tão bem aquele meio beijo que vos dou por semana.

14.7.05

Gostaria

Gostaria
Gostaria
De vir a ser um grande poeta
E que as pessoas
Me pusessem
Muitos louros na cabeça
Mas aí está
Não tenho
Gosto suficiente pelos livros
E penso demais em viver
E penso demais nas pessoas
Para estar sempre contente
De só escrever vento



Boris Vian
canções e poemas

9.7.05

LONDRES

Eu não sou de cá,
tenho cinco medos em cada mão
mas não sou de cá.

Sou daquela ceara de trigo,
de profundo silvado
ou matagal.

Sou do frio dos Invernos,
da caverna submersa pela luz
dos lagos eternos de Pompeia.

Sou dos bicos dos melros,
da asa partida da andorinha que falhou o voo,
e dos muros de Trancoso que não a deixaram passar.

Sou do tempo dos beijinhos,
da pólvora como lixo,
dos sete dias excelsos de masturbação.
Das águas engolidas pelos peixes,
por que mão,
por que não?

Sou do santuário onde se rezam páginas em branco
e se agradece aos sonhos do irmão.

Sou um fascista do Islão,
quero a morte,
não o pão.

Sou de lá.
Tenho cinco bombas em cada dedo,
porque não sou de cá.

20.6.05

ATOM HEART MOTHER

São gargantas de vento,
um ããhhhhhhhhhh ãáhhhhhhh tornado ar.
Respira, o silêncio respira-te e tu és silêncio com ele.
Um ããhhhhhh aahhhhhhh invocando mar.
Gargantas gementes, assobios de tempestade,
silêncio.

Agrafa-me a luz no peito,
guarda-me em fotocópias de céu.
São Sim, tetizadores gritantes, são sim.

Violências forradas a vermelho,
Brzzzz!
Respirar fundo.

E pelas caixas de seda entrincheiradas nos teus ombros solto a primeira tribo de medos.
Bicos de pés, fornalha acesa, perseguição: palavra anula palavra, comboio fora de circulação, urso parvo contemplativo adjectivado.
Épico sol-i-dão instrumental nas asas de um vulcão. Epicentro de chuva, esse magma, tanta lava, atravessado no credo, encharcado de lama.
Acabaremos todos lá fora, morreremos todos nus no êxtase da nossa canção,
acabaremos todos, concretizar na morte a complexidade da luz,
findaremos todos a cantar:
um ããhhhhhhhhhh ãáhhhhhhh tornado ar.

16.6.05

Tenho o teu retrato na mão.
Pé a pé choro os meninos do mundo
- de olhos no chão - passos tristes.
Tenho um retrato numa mão
E a lágrima de alguém na outra.

Quero ser como aquela máquina que vende o troco
a quem lhe comprar a fome.

Pé ante pé,
Quero ser um conto infantil.
Leve, azul de mar, barco flutuante.
Sem moralismos, sem noites violentas, sem a simplicidade hipócrita da luz, sem costas voltadas, sem reis e rainhas, sem príncipes bonitos, sem princesas perfeitas, sem espadas mágicas (como se alguma arma pudesse estar submersa no encantamento), sem bocas de hidrogénio.

Quero o silêncio de uma criança amada.
Ser conto infantil numa alma
Que semeia amor nas outras.

13.6.05

Adeus, amigo das palavras que nunca se gastarão




Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.


Eugénio de Andrade

10.6.05

Não gosto que me digam "o violino de trás está mal, faltam-lhe duas notas" quando estou apaixonado por uma melodia.

4.6.05

Nunca falho uma visita à Lua



Os dias choram e cada um deles é mais prateado que todos os outros. O arco-íris do tempo une todas as lágrimas pelo cordão umbilical - vêm da liquidez dos sonhos, vão dar em mar. São uma família flutuante que avança por espasmos, à superfície. De que lhes servem os corpos se a alma não está completa?
O homem-fuga é um quadrado com rodas sempre a chocar contra toda a gente nas dentuças dos passeios. De que lhe serve o corpo? Por que se servem dele? Acredito que use as mãos mal se esqueça não ser nuvem. Quer jorrar vida, fazer chover sobre os muros a límpida rede de cores. Roubar à pangeia do choro o sal das lágrimas audazes. Ser homem arqueado em direcção à lua.

30.5.05

"Transforma o fraco em coisa forte e tudo se renova...!
Transforma o fraco em coisa forte e tudo se renova...!
Transforma o fraco em coisa forte e tudo se renova...!
Transforma o fraco em coisa forte e tudo se renova...!"

Toranja, Ensaio

27.5.05

Se já nem os muitos dígitos dos números conseguem incomodar a ausência-de-alma que desfolha o jornal, então que uma dor personalizada arrepie a percentagem de humanidade que lhes sobra. Não basta o "coitadinhos", ajudem-me a encontrar o que basta.
Lágrima-dor.



Os pobres de Pequim
Mãe e filho dormem nas ruas de Pequim. A poucos dias da celebração do Dia Mundial da Criança, as autoridades chinesas estimam que muitos milhões de crianças chinesas continuam a viver na pobreza.
(Foto: Michael Reynolds/EPA)

Humanidade. Mais uma vez aqui.

24.5.05

Feliz por te voltar a ver, Tom.



Avisa-se toda a tripulação que me encontro, depois da próxima vírgula,
completamente fora-de-serviço para a vida adulta. Complementa-se o comunicado, adicionando-se-lhe a confirmada informação: extenderei a minha vontade de criança por mais algumas árvores de vida e apresentar-me-ei à sociedade "sempre descalço". Como tu, Tom Sawyer.
Como tu.

16.5.05

Borboletas para colorir cinzentos

Há, de longe a longe, pequenos bater de asas que me fazem sentir uma pontinha de orgulho na minha terra. Neste post sou bairrista. Sou de Paredes.
Tudo por causa disto. Um encantado(r) Concurso de Borboletas. Hei-de ajudar o meu sobrinho a ganhar, hei-de ajudá-lo a voar.
Queria.

14.5.05

Amigo nocturno



Ele foi, em tempos, apenas um menino mais velho que eu encontrava sempre de copo na mão e brilho ofuscante no olhar. Não poucas noites, a única pessoa em quem reconhecia a rara faculdade de saber sorrir-com-alma-inteira, estar atento aos que passam, acenar com pureza. E nesta noite, às muitas horas da manhã, aconteceu uma conversa encantada que, à minha maneira, resumo assim:
"preferes vinho ou cerveja?"
Prefiro que me enchas a tela com palavras, com os teus poemas preferidos. Tu que agora, para além de seres isto comigo, és aquele que lança com ansiedade a luz o teu poema preferido para o meio da aparente escuridão de uma conversa nocturna. Este, de João Saraiva:

Passo a passo

"Sou alta - diz a Amizade
Sou profundo - diz o Amor
E lembram bem, na verdade
Montanha e Vale ao sol-pôr
E antes que o Sol resvale
Ao pélago, onde se banha,
Já dorme em sombras o Vale
E ainda há sol na Montanha!"


És aquele que me obriga a derreter nas atordoadas palavras "muito muito muito muito bonito". És medo da solidão, do fim da lua e dos sonhos. E se eles não voltam, e se a lua se deixa aprisionar pelo cronómetro da dor? És aquele que procura e dá ombro. És o que diz "Foda-se! Ainda aqui estou! Venham agora...". Há maduro tinto alentejano para as solidões. És o que o oferece. Curas. Um poeta à direita, afinal também gosto de poetas à direita. És, mais uma vez, um segundo poema fulgurante que rasga com flores a conversa. De Pedro Homem de Mello, este:

Felicidade

Ó infinita consolação
De haver chorado
Algumas vezes!


Ele é, agora, o "eterno apaixonado por poesia". Já o sei. Ele é agora em mim qualquer coisa muito bela muito mais próxima da alma que realmente é. Ele alimenta as conversas com poemas e sonhos de abraços. Eu termino este texto (para ele) com promessas de presença e com mais um fantástico poema que me ofereceu. Há noites assim. Que não deviam acabar. Que deviam ser como na tela de Francisco Duarte Mangas:

"Deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos

inocentemente felizes

a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores."


Amanhã há mais sonhos por comer. E mais tempo para amar. Obrigado, amigo. Prefiro os poemas que me deixas. E o vinho dos amanhãs.

13.5.05

Chove



Gosto da chuva como quem acaricia um cão com pulgas no meio da rua. Abro os braços e vem-chuva-matar-com-o-vírus-do-prazer. Grito para os céus.
Mas, porque gosto muito de animaizinhos, queria mesmo era que chovessem gatos peludos lá do cimo do monte, por cima das nuvens, onde só habitam os reis das chuvas. E as rainhas, responsáveis por derrames de arco-íris.
Gosto das chuvas de fria e cândida gota.

ilustração: "Mulheres na chuva" de Alice Candeias Ambrosini

9.5.05



Haverá diferenças:
Um. É delicioso carregar um amigo às costas, pesado com os seus fantasmas de alcóol, às 8 da manhã junto ao Mar quase-beija-Porto. O Mar que amanhace em faces cansadas de tanto beber, de tanto biber. É inspiradora a travessia de sono e desejo que se arrasta (pés no chão, sonhos no horizonte) nos passos de exílio da Queima das Fitas do Porto.
O Porto é único ninho onde me permitem amar a minha solflor.

Pássaro-bati-asas-para-aqui. Para o aqui definitivamente sol de Braga.

Dois. É assutador que nenhum amigo me carregue às costas, fantasma só com copos em dívida, e que o caminho se arraste pelas ruas improvisadas, asfixiadas pelos monstros gigantes com portas e janelas. São de medo e de tédio os pensamentos do homem que queria sonhar. É inaceitável que não beba o suficiente para que possa ignorar a dor de mais um dia que vou falhar, dos tão carenciados alguéns a quem vou faltar. Às 8 da manhã, nem-um-rio, a sair do Enterro da Gata de Braga.
Braga é ser extraterrestre na única morada que tenho. É estar proibido de amar, sem nunca ter percebido porquê.
Haverá sempre.


ilustração: "Solflor" de Franco A. Stancato

4.5.05

O tão profundo BENFICA que há em mim



Era um menino tímido e estava lá. Arrepiado e surpreendido e com lágrimas no rosto. Nunca tinha pensado como a força colectiva, quando está feliz, pode ser tão divina. Era ainda no tempo dos 120 mil num Estádio. Na Luz de todas as glórias. Estávamos no ano de 1994 e o BENFICA era CAMPEÃO. Zero a zero contra o vitória de Guimarães. Quem queria saber. Estavam em campo todos os golos marcados ao longo da época. Estavam em campo as "papoilas saltintantes" e os seis golos marcados ao Sporting, em Alvalade. Estavam João Pinto, Vitor Paneira, Rui Costa, Schwartz, Mozer, Veloso, Isaías, Rui Águas. E eu chorava de tão feliz. De tão arrepiado. Bandeira às costas a gritar para a grande onda vermelha que a Luz sempre foi. O BENFICA era CAMPEÃO e fiz todos os quilómetros de regresso a casa com um sorriso nas lágrimas dos olhos. Ser Benfiquista é doença mortal. A fase terminal de estar sempre a sonhar com o vermelho na alma.
Ainda sou um menino e não mais vi o BENFICA CAMPEÃO, não mais chorei tanto e tão profundo. Mas sempre ergui a bandeira, vesti a camisola com orgulho. Fomos sempre os melhores em Amor à "chama imensa", sempre tivémos um "orgulho muito nosso".
Sou um menino pequenino e estamos no ano de 2005. Tem que ser desta, tem que ser. Porque este menino quer muito chorar de arrepios, quer muito saltar com toda a alma. Quer ver vermelho pintado pelas ruas.
Este ano este menino chorará.

3.5.05

Às vezes isto.

"Sonhar! Mas eu já não posso sonhar só isto. Preciso de sonhar mais - dum sonho sem limites que me satisfaça.
Dias há em que me deito na cama e não tenho mais vontade de me levantar. Olho em roda. Toda a vida me parece aborrecida e vazia. A minha falta de energia exaspera-me. Estou gasto e com rugas aos trinta anos. Estou cansado e esgotado, sem imaginação e sem nervos. Aflige-me não ter sido moço, não ter vivido como os mais, e insulto a minha quimera que me parecia de oiro, por quem me esgotei, para afinal a encontrar gelada e fugidia... Errei o caminho: não era por aqui."

Raul Brandão, A morte do palhaço e o mistério da árvore

2.5.05

Primeiro de Maio para reflectir


Dia do trabalhador, em Portugal: abençoadamente com os hipermercados fechados e com mineiros no sofá a verem os pontapés na bola.
Dia do trabalhador, pelo mundo, neste texto e imagem recortados do Público:

"Dia do Trabalhador no Paquistão
Um idoso transporta bidões de plástico nas ruas de Peshawar como forma de ganhar a vida, num dia em que o mundo celebra o Dia Internacional do Trabalhador. Manifestações por todo o Paquistão pedem melhores salários e condições para os trabalhadores."

29.4.05

Sonhos da Menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Cecília Meireles

26.4.05

Este aqui.

Podia mentir e fingir-te como é agradável fechar-me nas chaves da porta, dentro das ausências do mundo, a olhar para o tecto.
Podia fingir e sorrir-lhes lá fora com todos os dentes surdos. Ouvi-los atentamente nos seus "olás tudos bens" e responder sem malícia "hoje até era um bom dia para estar, se não chovesse tanto, se não chovesse, nas vagas, tão pouco".
Até podia ser qualquer coisa que não este bêbedo fumador numa solidão de livros fechados. Tu sabes, nos meus sonhos não existe mentira, há os pesados não-saber-que-dizer mas nunca nenhum deles mentiu.
Podia estar lá fora, abraçar e saltar cá dentro mas nunca soube fingir e hoje sou um monstro: hoje só quis saber de mim, hoje tenho vergonha de ser.

25.4.05

25 de Abril, Sempre!



Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

(porque sempre-sempre-sempre-sempre!!! é para nunca esquecer)

12.4.05

Escrito no Bom Jesus,
para uma menina
que, sem saber, sem querer, sem me ler, me ajudou a superar a dor de uma dor maior.
Fernando Pessoa diz que "a ferida dói como dói/ E não em função da causa que a produziu.". Eu digo que me doía e que ela nem sabia, ela nem me viu, nem lhe reconheço os gestos, a face, as linhas do corpo, mas ela estava lá. Reconhecer-lhe-ia o cruzar de pernas, as calças brancas coladas ao corpo e os óculos com varas de luz, se os visse. Estava lá e ajudou-me sem saber, o que ainda é mais misterioso e banhado de encanto.
Para a sua presença, para a menina-sem-nome, escrevi isto porque a amei violentamente.
A ti desconhecida:

Pediste-me o impossível. No relógio eram ainda zero horas, aquele tempo que pertence a dia nenhum. Entre o teu corpo e o meu há quatro árvores a tapar. Não lhes sei a raça: são só verdes para que a estória se torne mais simples de contar.
- os remos empurram o barco porque batem no fundo?
O impossível e eu fiquei com vontade de to dar.
A água não tem cor, carrega as tintas reflectidas no seu líquido. É verde enquanto as árvores forem mais próximas (e altas) que o escuro, tem vagas de negro para que não esqueçamos que até os troncos, as casas e as aves têm medo. E isso explica por que passa a água a vida a tremer. O puro, o límpido, o transparente teme pela sua vida. Treme.
Restam, nas margens, as rosas, as árvores verdes, as palavras de menina a saltarem à corda nas linhas do caderno: "café-café-lima-limão-sou-uma-metáfora-e-só-digo-que-não".
- porque não servem as velas para os barcos com remo?
E os peixes tremem com elas, movem-se sem ar agarrados às cores que alguém lhes deu e que lhes fogem. Algum deus, algum sol com varinha mágica lhes deu.
Na terra, a própria se encarrega de empurrar os carrinhos de bebé onde, ciclicamente adormecidos (como noites, como sinos), nos deixamos caír em precipícios.
E, depois, os peixes fingem-se de mortos flutuando com passividade à superfície da água. A cor da água é um grande reflexo: dos mundos e do vómito dos peixes. E da cotovia que a rasga ao amanhecer.

Não sei quem és. Mas, a quatro árvores pelo meio, foste companhia perfeita para tão insutentável dor. E agora foste-te embora. Era essa a tua missão: saber que não haveria lugar para ti se tivesses decidido ficar.
Com amor.
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny

6.4.05



Queria riscar todas as fronteiras dos mapas até abrir um rio. Banhar de verde as civilizações de luz apagada. Corre dentro de mim esse líquido, deitado nas margens chamo-lhe profundo desejo.
Queria amarrotar o mapa, fazer tranças gaulesas nos países pintados a vermelho. Baptizar de sol nascente os magros-de-fome que morrem sem nome. Queria sal nos rios, plantar flores e árvores nos filhos do Oceano Índico. São irmãos-de-mar os inimigos de guerra.
Dobrar os mapas em papagaios de papel, arrastá-los para o alto voo, leccionar rodopios com um empurrão.
Há, nos mapas, países que crescem tanto que são obrigados a comer os seus próprios deuses e, pior!, os seus próprios filhos.
Queria riscar todas as fronteiras do globo com a palavras paz até rasgarem: brotarem lagoas com voos rentes de andorinha.
Nas margens, seduzidos pelo imoral odor da água, é mais fácil amar.
Há, nos mapas, países que mingam tanto que se reduzem a uma fome de fuga.
Não seriam os chamados Países em Dias de Vingança se no lugar de arames farpados crescessem mãos dadas de rios, se fôssemos tatuagens de pássaro em alto mar.

Está no papel (e nas assassinas lanças) o que as correntes nunca deviam ter vomitado do mar.

31.3.05

Só quando tombar. Avisem-me se caio.
Na alma crescem lugares vazios, buracos profundos de ausências. Hei-de fazer um berço para o silêncio, hei-de adormecê-lo nos braços de um qualquer lugar falante. O vento enche de terra os buracos escavados pela saudade, o vento é mais forte que o biombo das palavras. Principalmente quando este não existe.
Eu já tinha dito: os homens deviam comunicar unicamente através da arte. Diriam Olás com manifestações artísticas de encantar e não deviam ter mais nada a dizer.
Não sei muito bem sobre o quê ou para quem,
mas
isto é um aviso.

15.3.05

Trombar III

Crianças lá fora pintam trombas de elfante na macaca. E saltam, saltam, saltam até perderem a vez. Meninos lá fora: não há espaço que não seja pisado pela urgente correria de brincar. Não há chão que não salte com eles.
Elefantes lá fora, em navios, em balões prestes a levantar voo, em canoas de flores, saltam à corda com as riscas das meias das meninas.
Adultos lá fora usam vatas e brincam mais que as crianças sonhadoras.
É este o meu feliz acordar.

9.3.05

Meu amor meu amor (Meu Limão de Amargura)

Meu corpo em movimento
Minha voz à procura
Do seu próprio lamento
Meu limão de amargura
Meu punhal a crescer;
Nós parámos o tempo
Não sabemos morrer
E nascemos nascemos
Do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
Meu pássaro cinzento
A chorar a lonjura
Do nosso afastamento.

Meu amor meu amor
Meu nó de sofrimento
Minha mó de ternura
Minha nau de tormento:
Este mar não tem cura
Este céu não tem ar
Nós parámos o vento
Não sabemos nadar
E morremos morremos
Devagar devagar

Ary dos Santos

3.3.05



Vêm ter comigo. Perguntam: como te classificas? por onde vieste? como fizeste para vir? e porquê isto? para quê? e o futuro?
Não sei o que responder e respondo mal: respondo tudo errado sem o querer. Podia ter dito: não respondo, não queiras saber de mim, não é bom que saibam de mim, nem sei se quero. Mas não. Respiro fundo, esfrego os olhos e respondo pacientemente com toda a confiança do não saber o que digo. Do querer dizer.

22.2.05

Hakuna Matata


Hoje sou o Sr. Vários-problemas-por-resolver que perdeu o B.I. num distante passeio molhado.
- Pela chuva, pela chuva!
Muito bem, seja: num distante passeio molhado pela chuva.
Hoje poderia bastar dizer como vos amo para que se resolvessem, para mais chuva com raiva de amor. Não chega.
- Para que chova bonito, para que chova bonito!
Como queiras: dizer que vos amo não chega para que chova bonito.
- "Os teus problemas são para esquecer...".
Não preciosos Timon e Pumba, Não.
Os meus problemas são para resolver.

15.2.05

CANÇÃO PARA A MINHA FILHA ISABEL ADORMECER QUANDO TIVER MEDO DO ESCURO

Nem sombra nem luz
Nem sopro de estrela
Nem corpinhos nus
De anjos à janela
Nem asas de pombos
Nem algas no fundo
Nem olhos redondos
Espantados do mundo
Nem vozes na ilha
Nem chuva lá fora
Dorme minha filha
Que eu não vou embora

António Lobo Antunes

14.2.05

Deontologia da Comunicação (fim de um ciclo)


Havia a alternativa Oeste, uma toalha rasgada com buracos do tempo, sinergias a todos que correm na alucinação das hélices como cães agarradas ao cadeado em círculos de inquietação enquanto aguardam os restos como eles. Respira. Ou continuava doente ou se limpava a ela-já-podre.
fazia-se um poemas, assim:

Noite-clara, noite-escura,
como estão os teus amores?
com quem andas agora que não é manhã?
Noite-densa, noite-leve,
com que roubos sonhas hoje?

Mas isso não era alternativa nenhuma, por isso não interessa. Depois de não se conseguir tomar qualquer decisão, prosseguia a ritual. Pisavam-se os pássaros com as asas nos pés, esmagavam-se sonhos de voar, eliminavam-se as espécies poluidoras do oxigénio com a fantasia dos tolos e pronto. Era essa a doença.
Queremos as tuas mãos para lançar sementes ao mar.
Toalha salgada com buracos do vento, moelas a cinquenta marés de eufórica agonia o quilo e isso é que era dramático: ele tinha alternativas e podia ter escolhido.
Mas desistiu.

4.2.05

Língua Espanhola


"En todo caso, había un solo túnel, oscuro y solitario: el mío."
Ernesto Sábato
[Com José Afonso que bem se estuda espanhol]
Creo que no dices la verdad. Las cartas que mandes las guardaré.
- No te permito que me ables así!
Hay ruido en el piso de abajo.
- Te prohíbo!
Hablas demasiado. Gastas un montón de palabras en nada.
"El inventor de "cosa" tenia razón. Faltaba en el diccionario un vocablo que nos informara de que los demás sobraban."
E pronto.

31.1.05

História e Semiótica das Artes Visuais

Arte: ou personalidade artística: aquele instante preciso em que os dedos deixam de sentir.
Vou comprar um casaco cor-de-mãe para nunca mais ter medo. Pintar esta ideia.
A maior das artes consiste no viver feliz. Juro que li esta frase em algum lado. Juraria. Também Modigliani se enterneceu pelos anjos caídos, apagou-lhes a aura, desenhou-os com cérebro.
"Um pintor autêntico tem o seu modo de imaginar que descobre um mundo novo", é certo.
O que escreve também.
O que escreve em colapso, apaixonado, também.

25.1.05

Telemédia


Arco-ironizou: há um conteúdo léxico, uma aparência e o que se injecta na realidade com pensamentos. Até porque, todos sabemos, a lógica ISO-8859-8 (hebráica) é raínha, mãe, raíz material - o vermelho carne fibra inflamada. Gritos em arco. Mais bits de insuficiência. E, diga-se com sinceridade, puta que os pariu. Eufemismo inteligente para evitar as malcriadices que aptece escrever.
Depois encostou-se lá a um canto e pronto.
La la la la uh! acabou tudo no Moulin Rouge com as carcaças duras sem dinheiro de regresso à máquina de escrever, pura, sem as merdices do multi-mérdia.

17.1.05

Sociologia da Comunicação



Bomba-relógio do tempo, explosão a cada minuto que passa. Não é nada, é só isso: o tempo. Chegou a hora disto e tempo daquilo - ai! como o daquilo passa!, está na disto de partir - o autocarro sinteticamente chega sempre a daquilo, embora às vezes se atrase nos distos. É a vida. Bomba-minuito do tempo, explosão a cada relógio que passa. É o comboio: gente anónima entra sai ou fica. A massa, geração relógio do transporte público das quinze e cinquenta e sete. Os relógios são para cumprir, meus senhores, e as regras para serem acertadas por eles. Regra tal, marcar para as doze e vinte nove, obrigação qual para as treze e cinquenta e três. Tal e qual o relógio, caras massas-homem de Tóquio ou de Barroselas.
Cada movimento seu ponteiro, já dizia o meu avô.
tic tac tic tac tic tac tic tac.

Publicidade (Base de dados)

Potencial cliente número 65870495. Perfil:

Senhor José Boné:
Bem vestido,
pindericamente penteado,
acredita no Pai Natal mas não na retoma económica,
pequena cicatriz no mindinho do pé direito mas ainda mexe ambas as pernas,
dois filhos (uma criança na idade do a e i o u e outra no Estádio sensório-motor segundo Jean Piaget, ambas do sexo masculino [potenciais consumidores de lâminas ou máquinas de barbear]),
nunca efectuou o Teste Projectivo de Porschach,
viaja três vezes por semana em transportes públicos,
disfruta da amizade de três vegetarianos e quatro esfomeadas por carne,
fastfood dia sim dia não,
carrega caixas de uma lado para o outro numa grande superfície comercial,
não se lembra de ter visto o por do sol e desconfia-se que confunda José Régio com uma marca de Bacalhau,
já não come iogurtes nem compra para os filhos porque é divorciado e esses estão sob tutela da mãe,
não pensa voltar a casar ("mais mulheres não, mais mulheres não!"),
sonha com hospitais e partos porque, diz-se, tem um exemplar do "Maternidade" de Almada Negreiros pendurado nas paredes do quarto,
fuma? às vezes sim, às vezes não,
paga renda da casa,
não tem carro e raramente roupa lavada,
penteado risca ao meio com salientes entradas para a progressão da calvice,
sonha com hospitais e com os filhos que deixou de poder visitar,
embebeda-se frequentemente (não esquecer: enviar informação à União Cervejeira e à Rota dos Vinhos) porque, sustenta-se, há um exemplar da pintura "Tempo passado e presente" de Paula Rêgo junto à lareira e ao sofá onde (às vezes não, às vezes sim) fuma e adormece (vender-lhe almofadas novas),
lê jornais,
homem sem idade,
ex-jogador de hóquei em patins no Desportivo das Andorinhas,
sofre de pânico de morrer só, de sofrer sozinho

e é o perfil perfeito para potencial cliente para os nossos produtos que são, bem feitas as contas, o mais importante de tudo. Faz-se uma piada, duas ou três imagens bonitas, um sorriso e ele compra. Nem que tenha que vender o que lhe resta da alma, ele compra.

Guardar dados na Base. Clique. Guardado.

10.1.05

Plantaçã0 67##773

Eu até plantava. Mas já nem sei.
Às vezes somos egoístas,
às vezes é mais fácil colher,
às vezes o silêncio não sabe mesmo falar,
às vezes somos sombra.
Eu até já nem sei. Mas planto.

Semeador
Eis que o semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao longo do caminho, e vieram as aves do céu, e comeram-na. Outra parte, porém, caiu em lugar pedregoso, onde não havia muita terra; e logo nasceu, porque não tinha profundidade de terra. Mas, saindo o sol, queimou-se; e, porque não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre os espinhos; e cresceram os espinhos, e a sufocaram. Outra parte enfim caiu em boa terra e frutificou; uns grãos renderam cem por um, outros sessenta, outros trinta. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
(Evangelho segundo Mateus, capítulo 13, versículos 3 a 9)

7.1.05

História do século XX

"Avante a nação!", distinguiu mãos de lençóis antes de gritar acordado. Já sabe de cor os movimentos: arranhar a perna com as unhas do outro pé, sentir o arrepio do medo na superfície da pele e deixar-se empurrar pelo pesadelo borda da cama abaixo. Sonhou a nação, queimou com nojo a caneta de Molotov Van Ribberntrof, evadiu-se para o alto Mar, cuspiu sangue e pedras dos rins, as mais pequenas e por isso mais livres e soltas sem qualquer compromisso irrescindível com o sistema linfático, queimara com nojo a caneta numa fogueira de cães é importante que se diga, reclamou com os tubarões sem fome, comeu-os, rompeu unilateralmente insensata fidelidade, "a grande mãe pátria", unha partida de tanto a perna sangrar, gritou acordando. Qual é o mal de morrerem, eles são tantos. Névoa, luz vaga, foi a 8 de Maio, penso. Quarenta e cinco mortos. Não, anos. Não sei bem. O sangue não estanca apesar de bem acordado, fora da cama, pés descalços no chão frio, barata feia dentro de um chinelo, Hiroshima fica na China ou na Indochina, calça-o, caminha esmagando-a, levanta a tampa da sanita, urina salpicando tudo de mijo, ou então a 6 de Agosto. Mais vítimas. Ou o mesmo ano. Não sei bem, não me consigo lembrar de tudo, um homem não é uma máquina, deixem-me em paz, o está-se bem social pois claro, evadiu-se para o alto Mar, reparou a rede de pesca cheia de buracos, envolveu-se nela, faz frio muito frio e a rede, nunca se sabe, pode ser quente, enrolou uma ligadura bem apertada no sítio da ferida, chorou,
"Cortina de ferro", distinguiu lágrimas salgadas da água do mar antes de adormecer gritando. Soluçou adormeido, restos de comida e o nome Vitor Emanuel III vieram-lhe à boca, o problema logo se resolveu na magistral sequência de arrotos que se lhe seguiu, dormia - medo a seu lado. Livro de História no chão.