10.11.08

Inédito - Último capítulo

A ENTREVISTA

Deitaram-no numa marquesa especificamente criada para o efeito. Não era a primeira vez que entrevistava um morto, ocorrera-lha há tempos atrás que só ter cadeiras podia tornar aquela sala inútil.

- Você tem filhos, senhor não-João?
- Sim, quatro meus, outro da minha mulher.
- Muito bem. Eles trabalham?
- O mais novo, com seis anos, sim. Os outros ainda não conseguiram arranjar nada, tive que os mandar para a escola.
- Não desespere, senhor não-João, há-de compor-se. Diga uma coisa: você costuma levar sempre roupas ensanguentadas para o local de trabalho?
- Só quando me apunhalam e me matam, senhor presidente.
- Senhor Engenheiro não-João, gosta do ambiente da nossa empresa?
- Não sou Engenheiro.
- Desculpe, Senhor Engenheiro. E o ambiente?
- É como lhe digo, meu senhor. Gosto muito que me apunhalem e me matem. Só hoje já me aconteceu três vezes.
- Foi ao hospital?
- Os matemáticos não me levam, dizem-me que apanhe o eléctrico do vento.
- Não conheço essa paragem, Senhor não-João. De qualquer das formas lamento, mas você não preenche o perfil para o lugar a que se candidata.
- Já agora, qual era?
- Agente funerário. Por uma questão ética a nossa empresa só recruta pessoas vivas para esse lugar. Lamento.


O matemático engolia um martini enquanto tapava o cadáver com um lençol branco.
Telefonaram ao filho mais novo para lhe darem a notícia do penoso desaparecimento mas ninguém atendeu.


Se calhar estava a trabalhar…

FIM.

Ilustração: Elisabete Flores