24.3.06

Euskadi eta askatasuna

Sou uma criança normal que ficou sem braços, não é muito mau na medida em que ainda posso falar, mas para escrever este texto foi preciso chorar, chorar muito até a raiva ganhar a forma de palavra. Não me importo, desde que chore. Os braços só atrapalham, se os tivesse já havia explodido uma bomba de vingança no cessar-fogo. Mas as minhas lágrimas, palavras, nunca ganham forma de bomba. Não me importo. Desde que chore muito, como sempre faço desde o dia em que me rebentaram com a cara. Até nem foi mau de todo, a outros rebentaram-lhe com a vida. A mim não me interessa. Ainda tenho cabeça para mascarar nos sonhos. Ontem sonhei com uma gigante capaz de engolir a paz, encapuçada, sonhei que me engoliu os membros quando abri a porta de um carro, que vi o meu pai a ser despedaçado enquanto as rodas voavam. Não me importo desde que acorde aos gritos durante a noite a chamar pelo pai que já não tenho. Desde que chore, grite tudo. Se tivesse braços dava-lhes com a participação cívica e política, que nem sei o que isso é, mas deve ser inacessível, das que se seguram com as mãos, na ponta de um machado. Mas não tenho, nem me importo porque já nada me importa, mesmo que por mim chorem e me amarrem contra o peito e me enfeitem com ramos de flores. Se tivesse braços arrancava-lhes os capuchos pelas orelhas e ensopava-os de vómito, mas já não tenho, nem me importo, desde que chore, desde que morda panos muito espessos até à asfixia. Não me importo. A propósito o meu nome é Cármen. Pelo menos era, antes de morrer.

Foto: El pais

22.3.06

Elevado ao forte o rosto tudo aguenta. Pensei em brincar com folhas, rasgar tudo verde, amplio esse anel de cimento até cobrir o dedo, sou candidato à presidência do cordão do teu sapato, lido que está o código cívil para te arquear os lábios em u. Elevado ao escuro a espécie tudo chora, mais ou menos vermelho, na rua da porta da praça sem fim do fundo da casa, a minha campanha é escrever banalidades e submetê-las a um dia mundial de uma porra qualquer.

11.3.06

Metro

Tudo foi para ti o que eu não vou escrever. Eras uma raiva à solta num metro cambaleante, para mim Lisboa é essa mancha negra subterrânea das manhãs e dos finais da tarde, onde a meu lado se apaixonam dois restos de razão, talvez o primeiro beijo, não sei, é um beijo ai isso é, uma mão no barão outra a acariciar o braço, amam-se mesmo, para eles Lisboa é mais que este escuro meu, para eles Lisboa é gaivota, um fado malandro na menina dos olhos, para eles Lisboa é outra coisa porque falam outra língua e sorriem de outra forma, para eles se calhar nem é Lisboa, é como se voassem ou nunca os visse, para eles até podia ser Istambul, que se foda desde que se amem, desde que o beijo (ai isso é: um beijo) seja o mesmo beijo, para eles não é estação terminal nem têm que trocar de linha coisa nenhuma, quando a linha é de amor não se troca de linha nem que se mate, para eles é mil vezes ritos de beijo,
viro a cara para outro lado, farto de ver, viro a cara para outras cores, e não é para ti nada do que escrevo, troco eu de linha, este metro é mais quadrado o que torna óbvio que se deve entrar pela janela, mas ela é de vidro e a porta já se fechou, estação terminal vai para lado nenhum, se calhar ainda fujo, não calhou e sigo no próximo, uma acordeão cego pede esmola pela graça de deus, mas como não lhe acho piada nenhuma desvio-me e abano os bolsos como quem não tem dinheiro, queria a espuma o mar, talvez se o metro fosse mais fundo tivéssemos que usar máscara, equipamento de mergulhos, todos os dias seriam uma nova navegação e as espécies que se encontram no metro não fossem ausentes de olhar, e nada disto é para ti, porque tu és tudo o que não escrevo, porque eles que sabiam o que era o amor já se foram para lá da estação terminal, para lá da vida, fazer amor, talvez só em beijos, talvez levassem o barão para poderem segurar a vertigem, não sei, eles que sabem do amor é que sabem, porque quando vejo a luz são cem metros até um prédio verde e lá se vai a luz outra vez, e vêm os computadores e as lâmpadas, se amassem até fazer luz não precisávamos de luz, e preciso que Lisboa seja mais, e nada disto foi escrito para ti. Tu, que me lês, se me lês, és tudo o que não sou capaz de escrever.