27.12.11

Poema para José*

Uma flor sendo modesta
pode esconder-se durante um
milénio na imaginação dos homens.

Por mais que chova
a raiz permanecerá teimosa

na boca dos homens

a saliva de açúcar
contra o esquecimento.

Um homem sendo ousado
há-de partir tanta pedra
que não sobre senão flor.

Um homem sendo homem
há-de aprender todas a letras do amor
- abcdefghaijklamnopqrstvwyxz: amor -
e renascer.

* José e o SINAL DE ALARME

19.12.11

Poema do Google Sky Map

Subíamos ao telhado para engolir as nuvens,
acima da cabeça os dedos grossos de Saiph esmagavam o zénite
e nem os que observavam o escuro lhe encontravam defeito.

Eram muitas cores juntas na boca
mas a língua ainda estava azul
e o relógio continuava parado
na madrugada.

Ninguém dormiu.

23.11.11

Parabéns pai

Meu pai faz hoje 62 anos. Começou a escrever as suas memórias, o seu grande romance de uma vida de intensa coragem, aos 61. O resultado, ainda provisório, é a coisa mais enternecedora que alguma vez li. Não resisti. E partilhei. Sou um filho babado sem saber como dizer "parabéns pai".


«Lembro-me que a partir dos meus três anos já começava a perceber o que tinha a fazer para  sobreviver.
E aos quatro já fazia recados por uma côdea.
E aos cinco anos já ia para o campo, para frente de quatro cornos e oito pernas para sobreviver.
E aos seis ia cortar erva para dar de comer a esses quatro ou mais cornos.
E aos sete ia cortar mato para a corte e era preciso fazer na terra.
Até que chegou o dia de ir a escola já com os meus nove anos e no primeiro dia fiquei muito admirado. Quando tocou a sineta para ir lanchar fiquei muito admirado por ver eles ir brincar. Era coisa que eu não sabia, pensava que isso não existia, mas aos poucos fui-me habitando. Entretanto chega a primavera lá vai o Fernando deixar as aulas para ir para a frente dos tais quatro cornos e oito pernas. Maldito tempo e maldita situação. Lá passou o tempo do dos meus dez anos sem ler e escrever. Maldito Salazar!»

Fernando Mendes, meu pai.

20.11.11

Sentença

Cada dia de trovoada
é uma nova paixão de Séneca.

Eu sei: a moral dos peixes

os erros da luz
e a dor dos homens.

Eu sei que o teatro está
irremediavelmente condenado
à sombra do espectáculo.


Eu sei que as consciências
não entram em erupção
mesmo que lhes seja pedido.

16.11.11

Ideias para injectar poemas nos romances (1)

Não somos totalmente humanos,
somos Simbiontes,
somos o humano com bactérias
ou as bactérias do humano?

A solidão não existe.

2.8.11

Chamada para os maus poetas (Fogwill)


Precisa-se de maus poetas.
Boas pessoas, mas poetas
maus. Dois, cem, mil maus poetas
precisam-se para que rebentem
as dez mil flores do poema.

Que neles viva a poesia,
a desnecessária, a fútil, a subtil
poesia imprescindível. Ou o in-
verso: a poesia necessária,
a prescindível para viver.

Que floresçam dez mãos no pântano
e na cova um Ele, um Juan,
um Gelman como elefante a abarrotar
de vidro partido,
ou um Rojas desfeito, mendigando
à Rainha de Espanha.

(Agora Espanha
voltou a ser um reino e tem Rainha
e Rei do reino. Espanha é um tabuleiro
de bispos politizados e peões
recém-comidos: à direita, negros,
paralisados, fora-de-jogo).

E aqui há torres de borracha, bispos
politizados e mulheres-polícia
a vigiar a casa.

À casa do homem,
por fome, correm todos, saltam
do quadrado, e são comidos.

Tudo isso abunda: faltam os poetas,
os mil, os dez mil maus, cada um
armado com o seu livro de merda.
Faltam os seus ensaiozinhos e romances em preparação.
Ah… e os curricola,
e as suas dez mil applys nos faltam.

Não é a morte do homem, é uma
grande ausência humana de maus poetas.
Que floresçam cem milhões de tentativas abortadas,
releituras, perturbações, fólios de cartão, ilustrações
de gente amiga, jantares com gente amiga,
exegeses, escólios,
tempo perdido como tudo.

Precisa-se de poetas gay, poetas
lésbicas, poetas
consagrados à questão do género,
poetas que cantem a fome, o homem,
o nome do seu bairro, a arte e a indústria,
a estabilidade das instituições,
a camada de ozono, o buraco
da revolução, o orifício azedo
das mulheres, o latido inaudível
do Pentium, a guerra
entendida como continuidade da política,
do comércio,
do ócio de escrever.

Precisa-se de Betos, Titos, Carlos
que escrevam poemas. Alejandras e Marthas
que escrevam. Nomes para poetas,
anagramas, pseudónimos e contra-senhas
para a chat room do verso precisam-se.

Uma poesia aqui do cirurgião nas calçadas.
Uma poesia aqui da mendicidade nas instituições.
Uma poesia dos salões de leitura de versos.

Uma poesia pelas ruas (venham ver os
versos pelas ruas…)

Uma poesia cosmopolita (subam para ver
os versos na Web…)

Uma poesia de amor actualizado (desçam para ver
poesia na manjedoura do amor…)

Uma poesia explosiva: etarra, ética,
politicamente equivocada.

Nos papéis, nos canais culturais
por cabo, nas telas e nos monitores,
nas antologias e nas revistas
e nos livros e nas emissões clandestinas
de frequência modulada procura-se
poetas e maus poetas:
grandes poetas celebrados pequenos,
poetas notórios, plumas iluminadas,
homens triviais, miméticos,
deteriorados pelo álcool,
descerebrados pela droga,
hipnotizados pelo sexo,
idiotizados pelo rock,
odiados, amados pela gente aqui.

Nas habitações procura-se.
Num bar, nos flippers,
nos minutos de descanso na oficina,
entre duas aulas de gramática,
na classe média, nos bairros
vigiados procura-se.

Haverá na tropa?
Nos balneários, nos banhos públicos
que começaram a construir?
Nos certames de versos?
Nos torneios de mini-futebol?
Debaixo do sol quieto?
A sós com a sua língua?
A sós com uma ideia repetitiva?
Com gente?
Sem amor?

Não é o fim da história, é o início
da histeria lingual.

Tudo começa e nasce de uma necessidade forjada na língua.
Falsifiquemos o desejo:
Preciso de ti, bebé.
Para começar preciso de ti.
Para necessitar, peço-te
esse minuto de poesia de que preciso, tolo:
quero que me devolvas o ritmo de
um poema errado,
que me acaricies com as suas quebras,
que me perturbes a mente com outra ideia banal,
e que me banhes todo com a trivialidade do mediano.

E a meio do caminho, no começo
da comédia terrena, quero viver
a insanidade e a necessidade
de um sentimento falso.

Precisa-se de novos sentimentos,
novos pensamentos imbecis, novas
propostas para a mudança, causas para
temer, para ter
aqui no sul.

E até Espanha é um mosaico
de formigas orientais:
romenas, tunisinas,
suecas à sombra de um Rei.

Riamos do Rei.
Da sua fealdade.
Da sua fatalidade.
Da Sua Graciosa Realidade.

A realidade é um sonho partilhado:
A realidade de Espanha
é a sua vigorosa língua pronunciando o eñe
e a sua manchada espada pronunciando a ordem
do capital e da sintaxe.

Ai, língua:
afasta de mim este caderno de prosperidade
cravado na tua virilha,
saturada de chips, e cobre
as nossas feridas com o bálsamo dos maus poemas..!


Fogwill, llamando por los malos poetas

(tradução mais-ou-menos livre a partir de uma Edição Eloísa Cartonera, 2008)


17.5.11

Provérbios e aforismos do Ministério da Justiça Popular



O amor é à prova de bala, desde que escolhas a arma certa.

A certeza é uma variável inconstante, há que arder com ela no fogo das decisões.

Decidir amar com um só tiro, erro rápido e careca.

Limpa a cabeça de tudo o que te dá sono se o que resta de ti se resume com sono e arrependimento.

Calça sempre um número acima do pé, esconde o segredo na ponta dos dedos.

Antes um segredo pronto para ser pontapeado que uma vida à deriva em alto mar.

Enquanto um barco se afunda, outro seca o casco ao sol.

Se não conseguires chegar a pé, compra um cavalo.

Há animais que justificam desconfianças: conferir sempre as quatro patas.

Passo a passo encontra o errante o caminho: cuidado com as criaturas que saltam.

Coelho: no forno à caçador não fantasiou Lewis Carroll.

Passa no cinema as horas que forem necessárias para descobrires que representas mal a vida.

A vida começa verdadeiramente quando descobres que é tudo mentira: as histórias que te contavam quando eras criança serviam apenas para que dormisses.

Se te perderes entre outra tribo, solicita audiência com o macho alfa (ou com o Senhor Leão).

Se te perderes entre outra tribo, finge ser o único que sabe o caminho.

Se te perderes entre os da outra tribo, promete-lhes pão na mesa.

Se te faltar o pão na mesa, põe uma máscara e usa três truques de magia.

Se faltaste a essa aula, não tentes inventar a máquina do tempo: é mais fácil voltar a estudar.

Escolher a arma certa é demagogia barata: prova antes o amor com todos os canhões.

E reza: ainda que sejas atingido pela bala, há sempre quem estude medicina.

18.2.11

«Semear, Resistir, Colher» (2011) | Livro gratuito | Edição infinita

O plantador oferece este pedaço de letra. O meu primeiro livro em .pdf. Explicações aqui seguem, retiradas da "nota de autor":

«Bater palmas, sacudir as pernas com as mãos, compreender a agonia de uma gaivota de inverno, afastar qualquer responsabilidade sobre os destinos do homem, da cidade ou da palavra.
Textos assim, como gaivotas enjauladas, escritos nas correrias do metro, no ócio do comboio, no aperto do autocarro ou na agonia alheia do avião. O ano dois zero um zero registado a pulso, entre esperas e chegadas, sem critério, conceito, edição ou revisão. Essencialmente é isso o que há para oferecer.

E não há que hesitar: um homem fica tão pesado que deve sacudir as suas palavras, erguer a cabeça, e continuar a caminhar.»


Semear, Resistir, Colher


Também disponível a versão física através de encomenda no site Lulu.com
(preço: 3 euros mais portes de envio*)
ou:
encomenda directa aqui ao autor [idiotequesw(at)gmail(ponto)com]
(por 4 euros):
(a entrega poderá demorar o seu tempo,
visto que no acumular de encomendas
é que está:
o ganho. nunca em euros).

Site Oficial "Semear, Resistir, Colher" | Facebook "Semear, Resistir, Colher"

13.1.11

O velho e o gato




As cidades crescem no outro lado do rio,
e aqui
um homem embala o gato de colo
enquanto fuma o último cigarro do dia.



Está completamente sozinho, ouve os passos da noite, que - sabe-se - vai a todo o lado, a um sítio de cada vez. sozinho não: a cafeteira ferve e há algumas memórias comprometedoras, foi militar, aprendeu a matar e a manter-se vivo apesar do mundo e da ordem. Em tempos, soube gritar com os mais frágeis, hoje é um homem só, duas pernas para o sono de um gato.

Não sonha, espera de olhos fechados a passagem das horas, crises e contra-crises, alguns golos do Benfica, uma ida ocasional à urna de votos para exibir a sua melhor água-de-colónia, aroma oceânico, natal de 1964, paquete além-mar. Do outro lado do rio, as luzes das novas cidades continuam a ganhar terreno à escuridão e, a cada novo dia, nasce mais um preto. Quase não há casas de fados, lamenta enquanto coça a anca, Este país caminha gloriosamente para a anarquia, será preciso pegar nas armas e voltar a matar, pena que nessa hora já cá não esteja para ver, avaliar, disparar. Da última vez que sonhou, abril de 78, viu cristo pregado numa cruz de alho a ser comido por sete coelhos voadores. Fugiu para a igreja que ainda estava fechada, esperou. Rezou 16 avé-marias, depois confessou-se e decidiu nunca mais dormir.

Fecha os olhos depois do gato, a ordem é religiosa, sente o tempo a passar. O ruído dos tacões da noite a passar garante-lhe que não corre qualquer risco de adormecer. E, quando, e, se, o corpo começa a ceder, toma banho, perfuma-se, apanha o barco para a outra margem e, de arma em riste, analisa a tiro as especificidades dos bairros problemáticos da periferia.

4.1.11

não durmo.



São seis da manhã e não consigo dormir.
Lá fora, vultos de homens, serpentes da madrugada,
ajeitam o nevoeiro e expõem no chão os seus objectos mais íntimos.

Lisboa lá fora, a vender-se às fatias por um pedaço de pão.
São seis da manhã e ainda não há fregueses. O dia começa no copo de martini
e na sandes de morcela. Começa no escuro. E não os vejo com medo.

São seis e catorze da manhã e faz frio por oposição. Hoje já não durmo.
O jardim ainda está fechado aos peões mas os homens já lhes preparam armadilhas.
A intimidade: colecções de cromos do Mundial de 86, Diamantino, Valdano, Tigana, Rummenigge, filmes em VHS, usados, pornográficos mas-não-só, livros lidos e não lidos, livros que não lembra ao diabo ler, colecções de chávenas de café, carcaças de computadores portáteis, a chupeta do meu mais novo...

Manhã escorrega no rasto de caracol. Já que não dormes ao menos que se faça luz. Manhã demorada. Ainda seis e trinta e um e hei-de ter muito sono às dez.
Lá fora, o barco para o Barreiro já fez três travessias do Tejo. Visto daqui é uma luz vermelha com muitas pessoas por dentro. Carros em pânico procuram os últimos lugares de estacionamento e duas carrinhas a abarrotar vomitam caixas de sapatos.

São seis e quarenta e oito da manhã num quarto andar da Feira da Ladra.
Hoje vendo a minha alma ao diabo para, às dez, lhe comprar uma pastilha de lucidez.
Todo o dia de hoje lá fora, já com tiques de aldrabão.