13.1.11

O velho e o gato




As cidades crescem no outro lado do rio,
e aqui
um homem embala o gato de colo
enquanto fuma o último cigarro do dia.



Está completamente sozinho, ouve os passos da noite, que - sabe-se - vai a todo o lado, a um sítio de cada vez. sozinho não: a cafeteira ferve e há algumas memórias comprometedoras, foi militar, aprendeu a matar e a manter-se vivo apesar do mundo e da ordem. Em tempos, soube gritar com os mais frágeis, hoje é um homem só, duas pernas para o sono de um gato.

Não sonha, espera de olhos fechados a passagem das horas, crises e contra-crises, alguns golos do Benfica, uma ida ocasional à urna de votos para exibir a sua melhor água-de-colónia, aroma oceânico, natal de 1964, paquete além-mar. Do outro lado do rio, as luzes das novas cidades continuam a ganhar terreno à escuridão e, a cada novo dia, nasce mais um preto. Quase não há casas de fados, lamenta enquanto coça a anca, Este país caminha gloriosamente para a anarquia, será preciso pegar nas armas e voltar a matar, pena que nessa hora já cá não esteja para ver, avaliar, disparar. Da última vez que sonhou, abril de 78, viu cristo pregado numa cruz de alho a ser comido por sete coelhos voadores. Fugiu para a igreja que ainda estava fechada, esperou. Rezou 16 avé-marias, depois confessou-se e decidiu nunca mais dormir.

Fecha os olhos depois do gato, a ordem é religiosa, sente o tempo a passar. O ruído dos tacões da noite a passar garante-lhe que não corre qualquer risco de adormecer. E, quando, e, se, o corpo começa a ceder, toma banho, perfuma-se, apanha o barco para a outra margem e, de arma em riste, analisa a tiro as especificidades dos bairros problemáticos da periferia.

4.1.11

não durmo.



São seis da manhã e não consigo dormir.
Lá fora, vultos de homens, serpentes da madrugada,
ajeitam o nevoeiro e expõem no chão os seus objectos mais íntimos.

Lisboa lá fora, a vender-se às fatias por um pedaço de pão.
São seis da manhã e ainda não há fregueses. O dia começa no copo de martini
e na sandes de morcela. Começa no escuro. E não os vejo com medo.

São seis e catorze da manhã e faz frio por oposição. Hoje já não durmo.
O jardim ainda está fechado aos peões mas os homens já lhes preparam armadilhas.
A intimidade: colecções de cromos do Mundial de 86, Diamantino, Valdano, Tigana, Rummenigge, filmes em VHS, usados, pornográficos mas-não-só, livros lidos e não lidos, livros que não lembra ao diabo ler, colecções de chávenas de café, carcaças de computadores portáteis, a chupeta do meu mais novo...

Manhã escorrega no rasto de caracol. Já que não dormes ao menos que se faça luz. Manhã demorada. Ainda seis e trinta e um e hei-de ter muito sono às dez.
Lá fora, o barco para o Barreiro já fez três travessias do Tejo. Visto daqui é uma luz vermelha com muitas pessoas por dentro. Carros em pânico procuram os últimos lugares de estacionamento e duas carrinhas a abarrotar vomitam caixas de sapatos.

São seis e quarenta e oito da manhã num quarto andar da Feira da Ladra.
Hoje vendo a minha alma ao diabo para, às dez, lhe comprar uma pastilha de lucidez.
Todo o dia de hoje lá fora, já com tiques de aldrabão.