10.11.08

Inédito - Último capítulo

A ENTREVISTA

Deitaram-no numa marquesa especificamente criada para o efeito. Não era a primeira vez que entrevistava um morto, ocorrera-lha há tempos atrás que só ter cadeiras podia tornar aquela sala inútil.

- Você tem filhos, senhor não-João?
- Sim, quatro meus, outro da minha mulher.
- Muito bem. Eles trabalham?
- O mais novo, com seis anos, sim. Os outros ainda não conseguiram arranjar nada, tive que os mandar para a escola.
- Não desespere, senhor não-João, há-de compor-se. Diga uma coisa: você costuma levar sempre roupas ensanguentadas para o local de trabalho?
- Só quando me apunhalam e me matam, senhor presidente.
- Senhor Engenheiro não-João, gosta do ambiente da nossa empresa?
- Não sou Engenheiro.
- Desculpe, Senhor Engenheiro. E o ambiente?
- É como lhe digo, meu senhor. Gosto muito que me apunhalem e me matem. Só hoje já me aconteceu três vezes.
- Foi ao hospital?
- Os matemáticos não me levam, dizem-me que apanhe o eléctrico do vento.
- Não conheço essa paragem, Senhor não-João. De qualquer das formas lamento, mas você não preenche o perfil para o lugar a que se candidata.
- Já agora, qual era?
- Agente funerário. Por uma questão ética a nossa empresa só recruta pessoas vivas para esse lugar. Lamento.


O matemático engolia um martini enquanto tapava o cadáver com um lençol branco.
Telefonaram ao filho mais novo para lhe darem a notícia do penoso desaparecimento mas ninguém atendeu.


Se calhar estava a trabalhar…

FIM.

Ilustração: Elisabete Flores

24.10.08

Pausa

Um momento!
Avança a carruagem, diz que sim com a cabeça, abana a perna cruzada, sacode a fibra do pensamento.

Um momento que isto é um lugar-comum e os lugares são como barcos atrasados. Apitam por descarga de consciência, um momento em que as águas são profundas e eu sou uma faca a vapor com pressa de a cortar. O Tejo, à noite, é um enorme buraco negro, abrigo de enguias, gatos cegos e pretos e outras monstruosidades.

Um momento!
A vossa esmola tenha a bondade de me auxiliar por favor. Os vossos olhos tenham a vontade de me entender por favor. O vosso medo tenha a habilidade de me poupar por favor. A vossa flor por favor. Vosso que é tudo, bondade, por favor.

Um momento
e descarrila esse olhar dos trilhos da memória, o passado é inútil e eu estou aqui. Com uma faca, um gato, um amor monstruoso
e isto é um lugar-comum com pressa de amar a vapor.

20.10.08

Inédito - Capítulo Dois

A NAÇÃO


Lidera destacadamente todas as estatísticas. É um exemplo a ter em conta internacionalmente. Por exemplo, em documentos: ali está, naquela nação, a lista evidente de tudo o que não se deve fazer. Outro exemplo: tais por cento de emprego instável, mais de desemprego. Outro: telemóveis. Outro: maior taxa de imobilidade interna. Último: as estradas de sangue.

O governo é composto por um ditador que já morreu, controla as decisões e as contas do Estado por videoconferência a partir de Demasiado Longe Para Voltar – o país dos que morrem. Composto por um ditador e os súbditos que desgovernam como podem um país original.

Aconteceu isto:
O mundo levara um safanão de uma crise económica grave. São cíclicas, mal ou bem os livros explicam. Foi há setenta anos, altura em que a actual magistratura política de mortos-vivos subiu ao poder. Impunha-se uma visão estratégica, coragem política, ilusionismo puro. O problema só pode ser um, argumentava o governo e advertiam os padres nos sermões: as pessoas certas estão em locais incertos. E começou a deslocalização de trabalhadores. Agricultores foram retirados das searas, são bons é no departamento de finanças. Poetas impedidos de escrever foram simpaticamente obrigados, perdão convidados, a assumirem a foice. Bailarinas para os mercados de fruta. Vendedores para a gestão de teatros. Gestores para a informática. Matemáticos para o socorrismo e jornalismo. Lâmpadas para o amanhecer, jornalistas para as pescas, médicos para a estatística, talhantes para a medicina, afilhados para a cozinha do padrinho, cozinheiros para a manicura, afilhados para os tachos da cozinha do padrinho, licenciados para onde calhar, afilhados para os tachos da cozinha do padrinho do governo, filhos-da-mãe para a pátria-mãe. Vindimeiros para a poesia. O poema:

Pisava as uvas descalço nem que
Me arrancassem o coração em terra
Um dia arrancaram-mo mesmo
Para que fizesse ferida nesta canção.


Plantações de trigo e arroz convertidas em árvores de magnólia, longas extensões de tulipas. Passeios calcetados com estratos de contas bancárias. Fruta embalada em sacos plásticos, esmagada pelo ecstasy da coreografia contemporânea de embalamento de fruta. Situação do nível da água do mar publicada em boletins actualizados ao minuto, cardumes esquecidos na escrita. Projectos de lei aprovados com panasquice. Meteorologia calculada com filtros de mudar o óleo. Teatros cheios de público que vai ver qualquer coisa. Neste fim-de-semana morreram 300 pessoas durante as consultas médicas, 73 por cento da quais de uma faixa etária entre os 45 e os 70 anos, 56 por cento do sexo feminino. 58 por cento, segundo novos dados. Bitoques de colesterol em todas as mesas. Matemáticas Belas com desfibrilhador nas mãos, na emergência médica.


Quando os socorristas chegaram ao local, a poça líquida era já vermelha e não entrava luz pela janela. A menina faz-tudo ainda não fez nada relativamente à reparação dos estores.

Não respira, ganhei eu a aposta.

Do interior de uma porta dourada, com ramos de azevinho talhados na madeira, sai o presidente da empresa de mãos no bolso e um palito entre o bigode. Onde está o nosso candidato? Está a apetecer-me humilhar alguém numa entrevista. Depois de se inteirar da situação, elogiou os paramédicos pelo excelente desempenho e pediu-lhes simpaticamente que levassem aquele que não se chama João de maca para a sala de entrevistas.


15.10.08

Inédito - Capítulo Um

PROCURA-SE DELEGADO COMERCIAL PARA ESQUECER A VIDA
MÁXIMA URGÊNCIA


Urinou num vaso chinês, abrigado por um quadro renascentista e caiu para o lado. Os médicos do hospital ainda não sabem dizer se é finalmente desta que morre, está em fila de espera para a triagem. Mas só nas alucinações do choque hipovolémico: a ambulância ainda não chegou.


A ambulância tem a bandeira de um país oco e é conduzida por um cidadão comum, licenciado em engenharia eólica. Está bloqueada no trânsito, carrinhas do pão estacionadas em segunda via, rotativos ligados com gemidos.


- Esta emergência não traz bons ventos nem boas marés.
- Cala-te e acelera!
- Para onde, para cima deste camião? Esse leva bons elementos e cerveja aos pontapés…
- Cala-te e espera!


As ventoinhas gigantes, pomposas instalações nas Serras, são geridas pela energia alternativa de um pedreiro, afilhado do presidente da junta, e por dois licenciados em filosofia do século onze, portanto: engenheiros.


Urinou não. O líquido urinou-o a ele. Aguentou, aguentou, só mais um bocadinho que já fala com o senhor director, esperou, esperou, o senhor entrevistador já deve estar quase a chegar, resistiu, resistiu, rins a gritar com facas, resistiu, são só mais uns vinte minutinhos e já está, o senhor consultor mais não demora, e caiu redondo no chão com máscara de incêndio para não se afogar na poça líquida. Urina não: medo.


O socorrista aplaude com alegria. O engarrafamento pulverizou-se em menos de quarenta minutos e, mesmo que já morto, ainda apanhamos a vítima quentinha. É sempre muito pragmático nessas coisas, formado na faculdade de Belas Matemáticas só arranjou vaga profissional nas tabelas de emergência médica. O socorro é uma soma invertida de equações, a vida é como uma tabuado, mas mais finita. É um bom profissional. Os números, lá estão: 20% dos casos com sucesso, só 80% de falecidos a suas mãos. Um sucesso.


O condutor da rosa-dos-ventos desfia-o:

- O Joãozinho foi para a escola e levou seis bananas, cinco caíram com ele na antecâmara da sua milésima entrevista de emprego, uma ficou suspensa no ar. Apesar da queda de Joãozinho, ele queria fazer chichi mas não teve tempo. Quantas bananas pode comer o Joãozinho, se não estiver morto? Quantos Joãozinhos vão conseguir emprego na empresa de distribuição de bananas? E quantas bananas podem comprar esses meninos com a miséria de salário que lhes propõem?
- Cala-te, ele recupera!


Não se chama João este homem no chão. Agora repousa sobre uma toalha humedecida colocada debaixo do seu corpo pela telefonista-secretária-porteira-gestora-de-recursos-humanos-malabarista-economista que agora rega as plantas enquanto assina uma papelada.




* ilustração: Elizabete Flores

8.10.08

Olá Sílvio,
diz olá aos meninos, diz olá aos que cresceram demasiado e aos que só agora começam a crescer, diz olá a todos de quem esqueceste o nome, às palavras desnecessárias do passado, diz olá aos desagradáveis, diz-lhes como é tão fácil ser também desagradável, essa forma de vestir dá-me arrepios na anca seu filho da mãe, diz olá aos morcegos, um dia inteiro em directo na internet, diz olá aos morcegos que estão de pernas para o ar porque não sabem que estão a ser filmados,

diz,

olá, que de alguma maneira estás de volta, sacudidos os fantasmas, longas batalhas de silêncio, um bem-estar demasiado bem-estar para querer escrever, diz olá-verde quando deverias dizer olá-vermelho ao semáforo avariado, diz olá-desculpa ao idoso que dorme na rua e que nunca foste capaz de amparar, diz olá a todos eu voltei a escrever porque penso que assim é que é, diz olá à expressão assim que é e espera que te responda, diz

olá

aos matulões que adormecem na biblioteca a ver paisagens orientais, diz olá a ti mesmo, ao espelho da tua borbulha, ao espelho distorcido da tua nudez, diz olá aos meses de espera vã sem uma única linha para no fim dizeres isto, olá-por-editar, para no fim dizeres olá a todas as coisas bonitas que querias escrever no mundo,

diz olá ao mundo que ainda não quebraste e a tudo o que hás-de escrever.

6.2.08

Lisboa que me vou.

La ciudad que navega
Enrique Vila-Matas

«A Lisboa hay que verla en el tiempo exacto de un sollozo. Verla toda entera con la primera luz del amanecer, por ejemplo. O verla bien completa con el último reflejo del sol sobre la Rua da Prata. Y después llorar. Porque uno, aunque sea la primera vez que la ve, tiene la impresión de haber vivido antes allí todo tipo de amores truncados, desenlaces violentos, ilusiones perdidas y suicidios ejemplares. Caminas por primera vez por las calles de Lisboa y, como le ocurriera al poeta Valente, sientes en cada esquina la memoria difusa de haberla ya doblado. ¿Cuándo? No sabemos. Pero ya habíamos estado aquí antes de haber venido nunca.


¿Ya estuvimos aquí antes de estar jamás? “Otra vez vuelvo a verte, Lisboa y Tajo y todo”, escribió Álvaro de Campos, que decía vivir en Lisboa como un fósforo frío mientras las casas de quienes le amaron temblaban a través de sus lágrimas. Sí, claro. Lisboa es el nada nunca jamás. Lisboa es para llorar, puro destino y llanto, fado y luz de lágrima. Pero al mismo tiempo es una inmersión radical en la alegría. “Otra vez vuelvo a verte, / ciudad de mi infancia pavorosamente perdida /Ciudad triste y alegre, otra vez sueño aquí”. No es la ciudad blanca que creyó ver un suizo equivocado, sino una ciudad azul de alegres nostalgias inventadas.

Sólo en Lisboa puede verse un azul de azules, que es un color que aturde. Lo vio Pedro Tamem, que lo inmortalizó así: “Desde lo alto os hablo, desde donde / añado azul de muchos colores / al otro azul que vuestros ojos ven”. Es un azul que se asoma al Atlántico y se confunde con él. A este balcón sobre el gran océano, a esta Lisboa luminosa y enigmática, Cardoso Pires la vio posada sobre el Tajo como una ciudad que navega, pues no en vano hay olas de mar abierto dibujadas en sus calzadas, y hay anclas y hay sirenas. Para Cardoso Pires, la última vista de la ciudad era una cortina de gaviotas enfurecidas levantando vuelo entre el Tajo y él. Si es verdad que veía esto, es que estaba sentado en Terreiro do Paço. “Paso horas, a veces, en Terreiro do Paço, a la orilla del río, meditando en vano”, escribió un tal Bernardo Soares. Si es verdad que Cardoso veía esto, es que estaba junto al muelle de los ferrys, al final de todo y al final de Europa, en una especie de finis terrae, ante un amplio ventanal que le separaba del Tajo.

Ese lugar es el punto de avanzada de una Lisboa que navega y que en Terreiro medita en vano mientras se adentra en el Gran Océano. Con la ciudad y Europa entera a la espalda, claro. Entre el aire, el mar y la tierra, la plaza del Comercio, la multitud, Europa, todo allí queda atrás. “No me digan”, decía Cardoso, “que no es una felicidad dejarse estar de esta manera, junto a una mesa, sobre el agua, las gaviotas saliendo debajo de los pies y pasando a dos palmos de los ojos, en un baile de algarabía”. Para estar en ese lugar hay que ir al modesto Café Atinel. Allí, tierna y confiadamente, podremos sentirnos aún más anclados en la ciudad que nos ha visto partir. Lisboa que navega.

No es el único punto de Lisboa en el que hay felicidad. Tierra adentro, está el British Bar, con su reloj con los minuteros al revés e inmortalizado por Wenders y Fuller en una película en la que ese reloj es metáfora de la relación extraña de Lisboa con el tiempo: reloj del British Bar, a cuatro pasos de Casi de Sodré, donde un reloj municipal –con la leyenda hora legal- marca, en clara oposición a la del British, la hora oficial. También tierra adentro, encontramos el Alto da Graça y, descendiendo, a la deriva, como hay que viajar siempre, la Cervejaría da Trindade, y más allá de todo, el rincón más elegante de la tierra: el bello jardín del Museo de las Janelas Verdes, espacio raro donde un camarero negro de smoking blanco sirve en silencio el cocktail Janelas Verdes´Dream. En ese museo de tierra adentro dentro de la ciudad que navega admiraremos un cuadro profético, Políptico de San Vicente, pintura con seis paneles que, aparte de encerrar el enigma del alma portuguesa, se adelantó en su época a los acontecimientos y anunció los Descubrimientos, es decir que el cuadro sabía perfectamente lo que iba a pasar.

Y si aun nos adentramos más en esa Lisboa que navega y dejamos atrás Janelas Verdes y avanzamos hacia los secretos del barco, hallaremos el Jardim das Amoreiras y más allá Largo do Carmo, centro exacto de la Revolución del 74, ¿quién la quiere olvidar? Y más allá, Bairro Alto, y luego el Chiado y las huellas de los pasos de su famoso poeta embalsamado. Y también las huellas del Otro, las de Sá-Carneiro: “Yo no soy yo ni el otro. / Yo soy algo intermedio”. Lisboa intermedia, Lisboa entre el fin de la tierra y el océano. Lisboa que navega. Ya estuvimos en ella antes de estar jamás.»




* Pintura: Miguel Westerberg

4.1.08

Janeiro

Este pedaço de frio cúbico, voz que queima
esta mão, forma de caixa
de fósforo, doze campaínhas em compasso surdo,
um urso de sede, o assalto está iminente,
hei-de enfiar uma bala no medo,
curar-te com um bisturi.
Este reflexo sem chama, três pancadas
no ponteiro, são horas de escurecer,
é o tempo perdido da criança do guarda-chuva.

Fui pescar palavras para as quatro da manhã,
abri a porta, falava sozinho, coçar de testa em forma de garfo,
é o pente dos pensamentos, três galos órfãos de dignidade,
frio de Janeiro.
Hei-de compor-te a canção perfeita,
limpar o soalho e adormecer.

Corre-me este mês na espinha,
arrepio frio, felino cor de pato,
circula de noite como um semáforo.
É tempo de apontar com luvas no indicador,
atear fogos, indicar ruas de boa viagem
na ponta do dedo.
Se fores a pé, sacode a perna dormente,
fecha os olhos ao caminho,
entrega-te à viagem como a flor de espuma.