24.10.06

Dois laranjais secos

Da Suécia à Grécia são apenas cento e vinte centímetros.
E, às vezes, o azul de cada um deles mistura-se indecentemente com o outro,
sem diplomacia intermédia, mesmo nas barbas do dono do hotel.
















A doença terminal sonha com um aborto ou com recém-nascidos?
Acorda o corpo prestes a tombar, leva-o pela mão até um espelho e sopra-lhe baixinho ao ouvido:
Olha, era este o monstro que te queria mostrar.
Os que lhe são próximos, que não enxergam nem monstro nem homem, choram Porque não sabem cantar hinos ao amor. Porque, pobres ingénuos, ainda acham que um homem pode morrer.


* imagem: História trágico-marítima; Helena Vieira da Silva (1944)

22.10.06

A pata afiada pela unha desenrola os gatos que já cheiravam a mofo.
Um fio de gato atravessa o buraco da agulha, pronto a tricotar.
É o ócio do novelo, apetece-lhe miaus em renda.

15.10.06

O milagre da mão-invisível
















Foi pedido ao tio zé, campeão europeu de construção de castelos de areia, que construísse uma casa sobre o mar.
Zé, ou tio para os sobrinhos mais próximos, enterrou a pá na areia, encomendou um barco, comprou fato de mergulho, aprendeu a nadar, licenciou-se em ciências marinhas, registou a sua cana de pesca junto das entidades competentes, lambeu um gelado de baunilha, contou duas anedotas aos caranguejos, fotografou a água a espumar-se nas rochas,
foi ver o barco, pagou-o às prestações com oferta dos remos, inventou a grua que levita, sonhou com tijolos de esferovite, concebeu-os em forma de sardinha, vomitou uma posta de bacalhau no restaurante do irmão, vendeu núcleos de ilusão no interior das dunas, sobreviveu a tempestades de areia, publicou um artigo de jornal sobre o assunto, foi lido por trezentas e vinte pessoas, engadelhou-se com uma rede de pesca, partiu para alto-mar,
equeceu-se de levar cimento, projectou o edifício com as coordenadas do pôr-do-sol, enfiou dois dedos na água salgada, levou-os à boca, tombou de encantamento porque se apaixonara por uma estrela.
Não pensou uma segunda vez: recusou.


* Ilustração: Moon and Sea, No. 2; Donna Ciaciarella

13.10.06

A unha do cadáver azul

a pomba pagou ao Estado para dormir no parapeito da janela,
a janela pagou ao arquitecto para ficar no terceiro andar,
o telhado, que anda de mal com o Estado, pagou ao céu para ficar no quinto,
as escadas, fartas do vazio sem passos, pagaram ao senhorio para não haver elevador.

a vertigem pagou ao alcatrão para se atirar pela janela abaixo,
o jornal pagou ao pedinte para tirar a fotografia,

a pomba urinou no jornal
mas a Economia não tinha troco.

11.10.06

Confissões de um Janeiro em Braga

Já não aguento esta cidade. Já me fogem as palavras de aço e é tão infantil a ilusão de as agarrar. Como lego, faltam peças e rodas a estes sempre-mesmos-edifícios.
São demasiados rostos de artifício suspensos nas vagas de ar. Sei que não aguento. Vejo eu, uma criança desesperada (três, quatro anos de desespero) a tentar chamar a atenção da mãe.
A mãe, com sotaque brasileiro, não interessa o sotaque, ignora a criança e discute com um homem que não é pai, um olhar daqueles não pode ser pai. O menino brinca, luta, levanta a voz com deliciosos tiques infantis, os adultos discutem sem nunca se olharem, a criança mexe, abana-se, tosse, brinca. Cresce com os olhos no vestido da senhora que passa.