12.11.09

Das belezas do mundo

Notícias da Sofia, da mamã e da tartaruga

«Um dia uma menina chamada Sofia completou cinco anos. E nesse mesmo dia uma fada madrinha, de seu nome Paula, ofereceu à menina uma tartaruga, verde, verdinha cor dos prados no despontar da primavera.

A essa tartaruga, que tinha o hábito de levantar-se do pequeno aquário em forma de coração, decorado com uma palmeira à sua medida, Sofia chamou “Fifi”.

Apenas um dia depois da tartaruga chegar à casa da menina e da mãe, não ainda recuperada do jet leg que foi o transtorno do transporte de uma loja de animais até à dita casa, envolta em papel de embrulho e dentro de um caixote, a menina insistiu em levar a tartaruga a passear até à casa do pai.

No reboliço que foi a viagem – Cartaxo – Azambuja – a tartaruga sofreu de amuos, traumas, medos, enjoos e virou-se de carapaça ao contrário no fundo do aquário assustando a menina que prometeu não mais levar a tartaruga em embalos de viagens “todo o terreno”.

A tartaruga está, desde então e para sempre, na imagem da menina. E mesmo num dia mais triste quando a mãe, numa crise existencial, pediu à menina desculpas pelo transtorno que é ter a menina que movimentar-se entre duas casas, que no fundo são suas, respondeu, depois de pensar um bocadinho:

“Não faz mal. Sabes, eu sou uma criança. Não sou uma tartaruga”. E abraçaram-se e adormeceram juntas. Mas sem a tartaruga...»

Ana Santiago, do Jardim de Chuva

29.9.09

Poema erjnfjdnfjdfndjfdjfdf.

São muitos os bancos vazios.
Eu não quero adormecer em cima daquele banco,
Cada seta atravessada na passividade do homem,
Cada decisão errada, essa procura da casa através de um poço,
Uma lupa para ampliar o sono.

Frustrações ao alto,
Coração nos pés,
Fé nos meus.

Se somos um labirinto, haveremos de ter saída.
Um flamingo a frio, se necessário,
É a primeira vida que me aquece.
Toda a impunidade do mundo caia sobre erjnfjdnfjdfndjfdjfdf.

15.9.09

Metro-a-Metro

Abro uma página à sorte para escrever o teu nome.
Mas um movimento de braços, bancos vazios, publicidade pendurada no tecto
- circula muito ar aqui.
Está frio e está calor,
adoece-se bem aqui.

Quando o nome que escrevi te chegou por carta,
não o abriste. Alguém diz:
palavras que anulam a vida num envelope fechado.
São nomes fechados, mesmo os mais belos, que se extinguem
por ignorância do mundo.

No último reduto do mundo, sonha um homem,
anestesiado e sedento de imaginação.
Amaldiçoado pelo gelo, em chamas no interior das raízes,
é uma flor.

São mais as gravatas que os homens no tornado da Avenida Nova.
E por maior que seja o santo, há sempre uma árvore intacta.

3.9.09

Bicho, sonho, fúria

Uma cabeça de nuvem, cimento, a árvore que aponta ambição para o céu, constante aproximação, assim é tão fácil sonhar, assim um homem não tropeça nos seus monstros de estimação, certo dia contaram-me uma estória assim.

Ouve, há pessoas más e pessoas boas, pessoas grandes e pessoas pequenas, pessoas que ganham a vida de madrugada e que são roubadas durante o dia, há muita gente na fila que não sabe se isto tem fim ou para que serve, vê, aqui está um monte de papel usado, cada um deles eterniza informações de tremenda importância, até que os engulam as baratas. Os três filhos de Marília, idade, profissão, nome completo, é um exemplo, estão todos cá.

É o conhecimento, meu caro, se o queimam ele volta a atacar sob a forma de cheiro a bicho pestilento. Se o ameaçam com a ignorância, o bicho primeiro mata e o bicho, depois, morre.

Diz, um filho por cada raíz, se te roubam a verdade e a atiram para longe, não te rales, o mar, que tudo engole e tudo devolve, trá-la de volta. No final de cada página há sempre uma surpresa, um país a renascer numa janela de comboio. É a nação ou a carruagem que avança furiosa? O sonho que tropeça ou o homem, trapalhão, morto pelo bicho da página?


Pintura: Anthony Green

13.

«Tenho doenças no corpo de fora e no corpo de dentro.
Quando cuspo para o chão passo as doenças de dentro para fora.
Quando for muito velho o meu corpo e o exterior vão ser quase a mesma coisa.
Quando morrer, eu e o corpo de fora vamos ter a mesma doença.
Isto pelo menos é que eu penso enquanto estou deste lado.
Morrer é ter a mesma doença que o planeta inteiro.»

Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher

25.5.09

O projecto da minha vida

Tenho em mãos o mais bonito e ambicioso projecto da minha vida. É como um poema de Herberto, dos que buscam a ternura suprema. A particularidade - do projecto - é um Tejo que se vê quase por todo o lado e o inevitável dilúculo de já começar a ser feliz.

«Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

(...)

Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
- Era uma casa – como direi? – absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.»

Herberto Helder
(o poema - não o projecto - remeto carinhosamente para aqui)


10.4.09

Um tempo sem mentira

«meu sonho tem boca
que o digam meus ossos
tem dois olhos sobre a nuca

e reza todos os dias
que em todas as horas
houve um tempo
sem mentira»

Foge Foge Bandido

18.3.09

Fogo-de-santelmo ou «o lume vivo, que a marítima gente tem por santo»

Para que os navios sem mastro renasçam nas tormentas. Um dia uma música na flauta de um camponês desvia a tempestade para o mar, esse é o dia dos padrões de luz, pontas inimigas no bico de um pássaro. A ciência mal explicada é um pecado mortal, como rezar os mandamentos por ordem aleatória, graça de cheia Maria avé convosco sóis bendita vós senhor entre as mulheres, a ciência que bem explica é maldita e que arda no inferno todo o potencial eléctrico, a pagã ionização das moléculas, diabólicas umas, atómicas outras, um acto de fé para cada fotão, libertem-no, prendam-no, saltem de umas camadas tumulares para outras ainda piores, o dia está carregado de electricidade, Senhor, olha só que grande novidade nos dais. Ensinai São Telmo e Santo Elmo a nadar no fim das tempestades, mais braçadas e menos fogo-de-artifício. Elevem-se aos céus todos os .objectos pontiagudos, porque na terra é que não há explicações. O chão que pisas tanto é dos homens como dos cães.


Do mito se faz ciência.

25.2.09

Inteiro Ida

rectângulo com um furo e ainda assim a música, historicamente nada disso interessa, muitas estações atrás, quando passávamos o tempo a tentar adivinhar o futuro, o buraco, o futuro, sonho infantil numa língua estrangeira, agora a carruagem pára, pára onde?, faltam cinco para a uma, uma matemática sem sentido, próxima vontade: adormecer-te.

12.2.09

Os outros

Quem são aquelas pessoas que sorriem no terceiro plano da fotografia,
quem caminha na areia onde a fotografia não existe?

Canto superior esquerdo: duas pernas deitadas de um corpo que dorme.
Canto muito inferior direito: uma criança ensina os braços do pai a nadar.
Canto excessivamente superior centro: duas mãos de chumbo orientam uma aeronave.
Total enquadramento: um bebé com chapéu azul tenta esburacar o céu com uma pá de plástico.

Quem são aqueles dois que simulam segredos e depois se afastam,
e o outro que lê um romance sentado numa pedra?

Canto Superior esquerdo: uma falésia vaidosa penteia-se para a câmara.
Canto nem tanto inferior direito: a fogueira nocturna desfaz-se em soluços.
Canto do total desfoque: a bandeira da argentina olha para baixo com harmónica arrogância. Uma noiva de metal – nua - abre a porta paras os comboios passarem.

Pergunto às flores de todos os negativos do mundo:
Quem é essa gente que se faz de convidada?
Que fazem aqui esses espiões se não fomos ensinados a partilhar?

27.1.09

Canção majestosamente tragada pela hesitação

Para quê escrever o que não sou se as tuas mãos continuam doces?

Não há ninguém mais chato que o homem que não o é
e, ainda assim, quer ser tudo, escreve tudo como se o fosse.

Tudo o que digo sem o escrever não deve ser levado muito a sério. Está escrito.

É nas tuas mãos onde não poucas vezes adormeço,
embalado como o menino de todos os mimos do mundo.
É desses dedos que sai toda a palavra, ainda que breve, desordenada pela tempestade,
ainda que assinada por mim.
Arrancam-me palavras do corpo, na agitação do escuro espantado:
Se não amasses tanto, amanhã não amanheceria. Escreve o escuro espantado.

Para quê escrever todos os minutos, alimentar um simulador de paixões
(nome menos usual para a impotência da memória)
se só me interessa o que sou
e não sei ser nem metade da palavra do meu nome
sem a tua boca
e a minha boca na tua mão?

16.1.09

Metro Amarelo Azul

Vamos de burro ou de táxi?
Vamos em frente, bicos das botas no sítio, três luzes acesas no telemóvel a carvão
e a viagem que é uma avenida loura a roer as unhas
e a avenida que é uma tira de texto arrancada ao frio.

Há quem adormeça em movimento para não ter que ver o chão que pisa,
há quem limpe o chão para aliviar o peso dos passos.

Hoje, de vassoura em punho e tinta no papel dos segundos livres,
correspondo com a tempestade
escrevo para uma estatua egípcia
lambo o selo
imploro para que venha ver-me.

Vamos de burro, com flores, enfeitar o coração da estátua.

14.1.09

Hoje

14 de janeiro
todo o santo dia bateram à porta.
não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa.
o vento deve estar de feição.
a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer.
que mais posso desejar?
e no entanto, não estou alegre nem apaixonado. n
em me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia.

Al Berto