28.9.06

A senhora que passa e O rapaz que a vê passar

A senhora que passa leva cinco vestidos no corpo porque não sabia qual usar; é a senhora que passa e só por passar mostra-os todos como bandeiras ao vento. um, azul com flores, dois, sóis com vermelho, três, uma risca dourada e vertical, quatro, bolinhas e bolinhas, cinco, saia muito curta por cima das outras todas. perna nua dos joelhos aos pés, perna de neve com passos na lua, é a senhora que passa, que é vista a passar.


O rapaz que a vê passar tem sangue no joelho e inquietação no corpo, é um arrepio, uma música de filme, uma ferida aberta, porque a vê passar. o terceiro vestido é muito decotado, imagina, o primeiro é aberto nas costas, imagina, uma única alça cruzada segura o primeiro, imagina, os outros não sabe, não imagina, não quer saber, porque a inquietação já lhe sobra e o buraco no joelho ainda dói. sangra uma vez pela dor e outra pela profundidade da ferida, a rapaz que deseja a senhora que passa.

19.9.06

A sede é um aquário ao contrário

Em miolos de 2006 um cavaleiro partira o seu violino para purificar toda a espécie vegetal e os grampos que o mantêm suspenso entre a geada e a andorinha sinfónica.
Vivia numa orquestra t3, bateria incluída, porque era alérgico ao ruído dos sinos que ora assinalavam as sete badaladas e três cêntimos, ora anunciavam a morte do manco com o eternamente no coração de sua esposa, filhos e restante família, ora só tocava porque uma cegonha lhe defecava em cima. E por também ser alérgico às penas cinzentas das cegonhas, dormia entre os três contrabaixos e o silêncio - próxima estação: Aveiro - desafinado.
A sua casa era muito frequentada por músicos e por saias que gostam de música e por homens que gostam das saias que gostam de música e, talvez por isso, desconhecia as virtudes das pensões de qualquer estrela e das avenidas do repouso.
Certo dia comprou uma pandeireta só para não parecer mal e roeu as unhas até ao pescoço em dó maior antes que lhe pedissem para tocar.

Em outros-miaus do ano de 2006 sonhou ferozmente com um quinteto de flores, mas depois acordou com miolos de cavaleiro nos dedos e um violino partido no tempo. E levantava-se com os chinelos de algodão enfiados nos ouvidos porque gostava muito de ópera, mas nem tanto. Não é uma atitude de derrota, mas sobretudo uma marcha descalça em defesa da queda do barril de relógios.
Um dia procurou tão obsessivamente um cavalo surdo que lhe saiu uma galinha. Chamou-lhe Opuleta nº 355 avariação contínua, em homenagem a uma coisa qualquer que ouviu na rádio mas já não se lembrava bem, porque também era alérgico aos órgãos das igrejas e ao trote melódico de éguas pardas. Adormecido sobre o infinito lombo da galinha percorreu meio século de sono, o cavaleiro que não sabia partir, e que partiu também a pandeireta com os dentes, em milongas, adágios e trompetes do nobre ano de 2006.

10.9.06

Demência ou Elogio aos patos

E em vez de poetas vieram formigas,
trabalhadeiras,
carregando as palavras às costas
enquanto o poema nu se lavava no lago.

O soldado disparou três vezes com a bisnaga
e molharam-se todos felizes para sempre.