30.11.10

Baú(s)


Um: Brotou engasgada, com base mas sem pólen. Tu, outra vez. Brotou engasgada a palavra tosse. Este Estado proletário começa a extinguir-se imediatamente após o seu triunfo, pois numa sociedade sem antagonismos o Estado é desnecessário e impossível.
Brotou: o teatro sempre foi um outro nome para a liberdade, a actividade mais próxima da utopia, dos prados amarelados por tantas flores. Engasgada: Encontro-me num restaurante em Espinho à hora do almoço.
Dois:
Curioso falar em homens agora que vou escrever sobre ursos: Peguei num mercado completamente rudimentar. Maneável, manuseável, não. Sorri, limita-te ao simétrico.

Curioso falar: há-de haver sempre uma diferença entre submeter uma multidão e dirigir uma sociedade. Ursos: 1. queixa-se durante noventa páginas de correr risco de vida; 2. aparentemente seguro, quer passar ao lado da História. Morre no fim.
Três: Não é do relógio quando está escuro. La Danza II vs Diabo no corpo. Violino vs Violino. Áreas de segurança, cheiro a borracha queimada e depois chamas. E Matisse não estava lá para registar! A arte escura também dá trabalho mesmo que as histórias dos figurantes fiquem por contar.
Do relógio: E ela disse: Às vezes só tenho força para aguentar certas coisas porque conheço o teu abraço.

12.11.10

Recado para amanhã:

que as nuvens se percam na tua cabeça e tu, com a cabeça no ar, aprendas a flutuar como cada uma delas.

3.11.10

A corunhesa




cidades onde o homem procura desesperadamente o mar, outras onde o mar, aos olhos do homem, inunda conscientemente a cidade. esta é um mar com casas dentro, o homem contornado pela prata da agitação das ondas e pelo sal de muitos séculos. uma urbanidade fingida, aqui somos todos pescadores, aqui todos lançam a rede e confiam no que há-de vir, aqui a luz, as aves, o tempo, flutuam ao sabor das marés.

impossível não sentir a costa, qual delas?, não dar de frente com uma gaivota e perguntar-lhe como és capaz de encontrar terra?. aqui não cheira a mar, só cheira a mar! fácil ser sorriso e andar a pé, aqui, caminhar de pé. cidade recortada por mão trémula na cegueira do homem-peixe. aqui somos todos pescadores, aqui não há interior humano que não se sobressalte com a força das marés. a luz, as aves, o tempo: como fomos capazes de fazer casa em alto mar?

22.9.10

«Le cadavre exquis boira du nouveau vin»





Está calor mas cheira a terra
molhada.
Vais levar para o mar o colchão
de encher. Abanar depois de cheio e furar
tudo,
o gato maltês nasceu num berço
anónimo do antónimo de António
Antunes,
vivo com todo o sangue de
Saramago, mago que sara feridas
literárias,
parcialmente consentidas pelo
medo do lobo que espreita quando visto
vermelho
de Abril, vermelho de janela
inventada de cor e cores que cegam
o branco,
neutro como esta mão sem
palma contígua à continuidade de
Herberto, o grande coração aberto.

Eu e Ela, em Lisboa, Madrid ou Salamanca.

* Imagem: Cadáver esquisito de Fernando José Francisco e Cruzeiro Seixas (especialmente desenhado para o efeito).

1.9.10

Morrer em Moçambique



Pergunta: em que jornal se publica o preço dos mortos?
Pergunta: a que horas passam os autocarros do terror?
Pergunta: senhor fardas, prefere espancar-me dentro de casa ou no exterior?

31.8.10

Santos (amén!) em discurso directo (I)



Vivo no amor, amores. Vivo no milagre da multiplicação do metal, pobre, eu, vivo. Vivo no cálice do temor, arre!, que inimigos não tenho e se os tenho nada podem contra o pão. Vivo no pequeno ecrã, entre lençóis, porque inventei o ócio no horizonte, dizem, carimbam. Vivo na ignorância dos homens, eu, pobre, vivo na morte, eu, pobre santa padroeira de quantas televisões esburacam o mundo. Vivo num guia muito religioso para turistas adinheirados, eu, um poço de metal, uma atracção, um programa de entretenimento muito antigo entrincheirado em televendas.

Eis Santa Clara, amén!

20.8.10

Estudo (muito mau) para um texto (muito mau) sobre o estudo (muito fraco) para um texto (muito fraco)



Acorda cidade ancorada no sono dos cruzeiros. É manhã quente de Agosto, hoje estão em Lisboa e amanhã em Massamã, desfrutar.
Apresenta-te em francês, na toponímia dos campónios viajantes, ici la lune, c'est la vie, fumega na língua universal do turismo navegante, desfaz-te mas acorda.

Este aqui, monumento centenário, evocando o heroísmo dos que se deixaram a dormir na iminência da fronteira de mais um dia de trabalho. Estátua amada, gananciosa, em pose de modelo decapitado.

Acorda cidade, que só no teu despertar se abre a linha azul do vulcão glaciar, muita vontade nos passos da gente, feições apertadas e nuvens de sossego.

Cidade em pó,
com especial atenção nas entradas e saídas do mostrengo, um mar em fogo de argumentação, pronta a misturar-se com a evidente histeria líquida e colectiva de um barco a vapor e seus passageiros: look my darling, a little flower.

Acorda ruidosa, Lisboa, cospe fogo num rugido de tesão, dissolve o silêncio na neutralidade de um urso, sê quotidiano imperturbável, abana a tua nobilíssima cauda de cão e, acima de tudo, não deixes que te afundem com miminhos.

17.8.10

Canção popular de improviso: Éden, vómito, Abergil *




* (pelo Rancho Folclórico de Ashdod)


a pedra espia uma mulher
muito doce em sua farda
pedra suja e pervertida
não vês beleza em tanta vida

Refrão (x2): pedra suja e pervertida
sou beleza em pouca vida


tantos corpos alinhados,
já estão cegos em sentido,
minhas poses para namorados,
arrasam o homem apodrecido

Refrão (x2): pedra suja e pervertida
sou beleza em pouca vida


sei da guerra por decretos,
faço fotos divinais,
encho o papo a analfabetos
podem vê-los nos jornais

Refrão (x2): pedra suja e pervertida
sou beleza em pouca vida


agora querem condenar-me
corro mundo em cabeçalhos
eis a dor a procurar-me
- mas que carga de trabalhos

se for morta aos vinte e dois
declarai amor à guerra
tudo se torna estrume em terra
tanto homens como bois

Refrão (x2): pedra suja e pervertida
sou beleza em pouca vida


pedra suja e desprovida
és testemunha corrompida.

13.8.10

Luz. Contra-luz.




Digo: Lâmpada. Muitas línguas estrangeiras, uma por cada estrela cadente, muita luz em Lisboa, boa, voa, voa, e um sol canino a ceifar rios no Japão. Não vi. Diz-se: Tivesses visto.

16.7.10

Odmor

Vamos.



«[Both:]
Ahh Home. Let me come home
Home is wherever I'm with you.
Ahh Home. Let me go ho-oh-ome.
Home is wherever I'm with you.»

16.6.10

escrever futuro em todas as línguas
nas ponta dos pés
e pontapear o mundo.

Lisanov



Eis a sinfonia dos distraídos.
Antes um bairro que um poema
e depois essas portas para quem?

Há uma maneira de ver isto:
um dia, qualquer um, sair de casa
e nunca mais ser encontrado.
ilusionismo ou fogo posto na cabeça
- uma questão de memória.

-uma questão de sonho.
Se vês uma multidão em sintonia e caminhas em sentido oposto, não é a tua multidão.
Se, mesmo furando a multidão, desapareces, a multidão venceu-te.
E não acordas.

Eis a última sintonia dos distraídos.
Antes a morte misteriosa que um equívoco neutro.

11.5.10

Homenagem a Rato Zinger




Começou assim:
«se o papa papasse papa
se o papa papasse pão
o papa tudo papava
seria o papa papão»

e acaba assim:

ó papa salgado quanto do teu papal
são papas de Portugal
Por nos papares, quantas mães choraram
quantos filhos em vão rezaram!
quantas noivas ficaram por papar...
Para que fosses papa, no mar

Valeu a papa? Tudo vale a papa
se o papa não é pequeno.
Fui ver.

8.4.10

mingo.

















O que trama isto tudo é que não consigo pensar,
devo muito à inteligência e sou um poço de cansaço.
Nesse capítulo, nada de novo: muita gente
a fazer barulho e um enorme declive
e todos cá em baixo sem forças para subir.

Depois é a grande espera, o silêncio dos que duvidam,
não sei se durma não sei se grite,
e uma solidão maior que a do cão estrangeiro.

Domingo: mulheres que tropeçam no asfalto
porque não souberam esperar.
Domingo: muitas casas mudas, muitas ruas mudas.
Domingo: não sei quem são os que me olham.
Domingo: amanhã será por mim, sossega.

O que dá cabo disto tudo é não saber para onde ir a seguir,
por muito que suba,
ainda que fale alemão.

Aconcheguemo-nos, conhecidos e desconhecidos, cabemos todos
e viagem não assim tão grande.

Subamos enquanto os homens que gritam
são uma ameaça com pássaros
aos homens que dormem.
Subamos o domingo: a escadaria dos que ficam lá no fundo.

30.3.10

aço, fome, cavalo, sono



Não é assim tão bom,
não é assim tão mau
- tem momentos, espasmos,
acumula erros
cristais
ilusões de aço
flores em chamas.

Antes do romance, a honestidade:
não prestas, poeta.
És pó, fumegas, tosses mas não dizes,
perdes o teu tempo.

Enquanto pestanejam o bem e o mal,
mastigas o futuro em círculos
e queimas a artéria esgotada.

Antes do romance, a matemática:

1. Doeu. O nariz dói quando está irritado. Quando dói, as sobrancelhas juntam-se a pele estica, quando ai. Não gostas que suspeitem do teu ai.

2. tenho fome. tenho comida. não como.

3. As minhas botas pintam as meias de castanho. Não cheiram mal.

4. Tenho uma guitarra. Tenho silêncio nas duas mãos. Não toco.

Não é assim tão longe,
não estás assim tão perto.
por muitos sonhos que saltes
como um cavalo
na flor brotada.

8.3.10

A isenção do homem-livro























Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar.
Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor.

É uma fórmula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela janela nem atravessa pontes.
E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes,
um nível abaixo do penteado.

A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma tirania difícil de inalar.

Dão-lhe a poesia e ele escreve tempestades.

27.2.10

A zaragata dos Livros ou O uivo de uma biblioteca em construção

















Gil Vicente namora com Jorge Amado,
eles agora até já se casam!,
A Paixão de Almeida Faria é uma anedota para Agostinho da Silva,
Mia Couto ensanduichado por uma Gramática de Português para estrangeiros,
a língua portuguesa é muito traiçoeira,
que o diga Enrique Vila-Matas, mesmo Longe de Veracruz,
que tudo vê amarelo, onde tudo é Aparição,
mesmo que Vergílio Ferreira se distraia com anões.
Harold Pinter, alguma madeira e uma Polaroid para Saramago.

Cecília Meireles muito acima de Sarah Kane,
eles agora até se amam!,
vão à pesca com Raul Brandão e morrem em palco,
deseja o leitor - Bernardo Santareno e Anunciação.

E os Antónios, Franco Alexandre?
E os Antónios, Ramos Rosa?
E os Antónios, Ferlinghetti?
Que os Antónios - meu Lobo Antunes - sejam todos Herbertos,
absolutos, laranjas, peixes, amador e coisa amada,
martelem, martelem, martelem!,
eles agora até se martelam!,
num século ou num segundo
desde que em Ofíicio Cantante.

22.2.10

O nosso primeiro Rilke


(...)
«É certo ser estranho não mais habitar a terra,
não mais agir conforme o que mal acabáramos de aprender,
não mais dar às rosas, e a todas as outras coisas identicamente promissoras
o significado do humano futuro;
não mais ser o que se tinha sido
em infinitamente angustiadas mãos, e abandonar até
o próprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado.
É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
tudo o que antes tinha unidade. Estar morto
é laborioso e cheio de recomeços, até que aos poucos
nos apercebamos da eternidade.»
(...)

Rainer Maria Rilke, Primeira Elegia de Duíno

19.2.10

Quarto Crescente



Tantos cavalos, tantos Camões, não é?
um homem é um poema que passa a correr
mas há-de voltar, não é?
a memória curta de um gladiador, dizes tu.
quatro pernas robustas: o poema.
o cavalo que corre na passada
e o homem que não o alcança.
o poema: dança.

Metamorfose ambulante

Novo hino dos meus dias.

«Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo

Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou

Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor

Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

É chato chegar
A um objetivo num instante
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou

Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor

Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

Eu vou lhe dizer
Aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo»

Raul Seixas | Raul Seixas (música mais limpinha)

7.2.10

Diário?

Isto é o passado.
A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui.
Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita,
aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito,
onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem,
onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo definitivo.

12.1.10

não dou.

é claro que isso é um homem e é óbvio que serve para alguma coisa. é isso que me dizem: ela está pesada, ainda por cima, e não há estrutura óssea que a aguente. é isso: a vida, uma vida de comboio, a brincar às viagens, distâncias, ao silêncio dos percursos.

é claro que um homem se arrisca a morrer num comboio, não conhece os obstáculos, não sabe a que velocidade segue a carruagem e o local exacto onde está move-se a uma velocidade impossível para qualquer geógrafo. é: o homem que nunca está no mesmo local, não está em local algum. sei que finjo. este homem não me interessa particularmente, uso-o para ignorar os meus próprios medos.

é claro que é um homem e é óbvio que os meus medos, hoje, crescem em movimento. é isso que lhe dizem: homem, esgotas-te no teu nome de miragem – foges-te. é isso: se o amor nos esgana, não há limite para a nossa fúria.

o homem adormece na carruagem com um animal morto. é: por que choras tu, pirilampo, se foste condenado à luz. é claro que serve para alguma coisa, inútil seria escrevê-lo. é isso que me diz: fazes-me sentir uma flor, fazes-me sentir uma vassoura ou uma flor com espinhos atravessados na garganta. sentes-me? sinto o meu corpo como um país estrangeiro, diz o homem com uma guerra em marcha, dentro e fora. é isso que eu digo: todos os militares escondem a sua meninice dentro da cabeça do homem.

é isso: há homens que servem para qualquer coisa. é: e outros para os destruir.