28.6.06

Se soubesse escrever,
escrevia assim:

História roubada II

Quando tinha 16 anos a Maria decidiu ensinar o cego, o Manuel, a dançar.
Um, dois, três. Olha sem veres para mim. Olha-me sem me veres a olhar-te.
Um, dois, três ais. Caiu-lhe nos braços. Aos 18 anos comunicou às amigas: vou casar com o cego, o Manuel, aquele com quem me vêem passear nos jardins
(flores degoladas na luz de inverno)
com quem me vêem, sem que vos veja, dançar.
Casaram
(sorrisos sinos e brancos azuís de primavera).
Aos 22 anos, o Manuel, o cego, trocou a Maria por uma manca.

D' estas mãos.

9.6.06

Os olhos do outro.














Quanto mais amarrada a boca, maior a urgência de falar. Não são parte do silêncio, os olhos. Brotam dimensões de intervenção onde tudo grita com ternura, órbita na órbita, um no outro com tanta intenção que torna marítima e secular a compreensão, qualquer tentativa vã, este desejo pelo indefinido, a procura de palavras inexistentes, como se na própria definição, no todo definido, vivesse o bicho que infecta e apodrece a vida. É por isso que me olhas, te observo, é por isso e, sobretudo, por não ser isso. Porque é também mais complexo, ou então é nada, todo este desejo que partilhamos na desajeitada carruagem comum.
E nunca me dirás se realmente me olhavas,
tão rápido como eu nunca ser capaz de to perguntar.

* Never-ending train, Neurone Pipero

6.6.06

6.6.6


Dança para mim, George, é sábado de manhã e preciso de mimo, é sábado de manhã e nem um fox-trot, George, dança para mim. Há meninos sem pernas a chorar lá fora, há meninas orfãs que perderam os filhos, ou filhos que perderam os braços e o pai, amor, faz alguma coisa. Estou farta, canta para mim, George, aquela do sinatra que assobias no golfe, antes de cada tacada, aquela daquele filme que não viste porque estavas no golfe, querido. Mas canta na mesma, George. O mundo é tão bonito e tu a deixar que seja mulher infeliz. Arranca-me esta burca de vergonha, George, dá-lhe com os punhos de uma só acentada, como fazes com o whisky, George.
Sabes que há crianças sudanesas que com quatro anos já usam farda? Mata-as, coração, metem-me medo. Ensina-as a dançar, a cantar, mata-as. Ouvi dizer que há paquistanesas que gostam de basquetebol, não deixes, ternura. Hoje é sábado de manhã, leva-me ao deserto, queima essas montanhas de sangue, coisa doce. Não duvides de mim, não sou feliz, leva-me a uma igreja, amor. Sabias que há negros no Brasil, na Alemanha e na Suécia? Faz alguma coisa, George, dança para mim. É sábado de manhã e ainda não te vi na tv, meu fofinho. Sabias que as mulheres palestinianas põem ovos? E não me disseste nada, George?