29.4.05

Sonhos da Menina

A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho
risonho:

O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .

Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?

Cecília Meireles

26.4.05

Este aqui.

Podia mentir e fingir-te como é agradável fechar-me nas chaves da porta, dentro das ausências do mundo, a olhar para o tecto.
Podia fingir e sorrir-lhes lá fora com todos os dentes surdos. Ouvi-los atentamente nos seus "olás tudos bens" e responder sem malícia "hoje até era um bom dia para estar, se não chovesse tanto, se não chovesse, nas vagas, tão pouco".
Até podia ser qualquer coisa que não este bêbedo fumador numa solidão de livros fechados. Tu sabes, nos meus sonhos não existe mentira, há os pesados não-saber-que-dizer mas nunca nenhum deles mentiu.
Podia estar lá fora, abraçar e saltar cá dentro mas nunca soube fingir e hoje sou um monstro: hoje só quis saber de mim, hoje tenho vergonha de ser.

25.4.05

25 de Abril, Sempre!



Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

(porque sempre-sempre-sempre-sempre!!! é para nunca esquecer)

12.4.05

Escrito no Bom Jesus,
para uma menina
que, sem saber, sem querer, sem me ler, me ajudou a superar a dor de uma dor maior.
Fernando Pessoa diz que "a ferida dói como dói/ E não em função da causa que a produziu.". Eu digo que me doía e que ela nem sabia, ela nem me viu, nem lhe reconheço os gestos, a face, as linhas do corpo, mas ela estava lá. Reconhecer-lhe-ia o cruzar de pernas, as calças brancas coladas ao corpo e os óculos com varas de luz, se os visse. Estava lá e ajudou-me sem saber, o que ainda é mais misterioso e banhado de encanto.
Para a sua presença, para a menina-sem-nome, escrevi isto porque a amei violentamente.
A ti desconhecida:

Pediste-me o impossível. No relógio eram ainda zero horas, aquele tempo que pertence a dia nenhum. Entre o teu corpo e o meu há quatro árvores a tapar. Não lhes sei a raça: são só verdes para que a estória se torne mais simples de contar.
- os remos empurram o barco porque batem no fundo?
O impossível e eu fiquei com vontade de to dar.
A água não tem cor, carrega as tintas reflectidas no seu líquido. É verde enquanto as árvores forem mais próximas (e altas) que o escuro, tem vagas de negro para que não esqueçamos que até os troncos, as casas e as aves têm medo. E isso explica por que passa a água a vida a tremer. O puro, o límpido, o transparente teme pela sua vida. Treme.
Restam, nas margens, as rosas, as árvores verdes, as palavras de menina a saltarem à corda nas linhas do caderno: "café-café-lima-limão-sou-uma-metáfora-e-só-digo-que-não".
- porque não servem as velas para os barcos com remo?
E os peixes tremem com elas, movem-se sem ar agarrados às cores que alguém lhes deu e que lhes fogem. Algum deus, algum sol com varinha mágica lhes deu.
Na terra, a própria se encarrega de empurrar os carrinhos de bebé onde, ciclicamente adormecidos (como noites, como sinos), nos deixamos caír em precipícios.
E, depois, os peixes fingem-se de mortos flutuando com passividade à superfície da água. A cor da água é um grande reflexo: dos mundos e do vómito dos peixes. E da cotovia que a rasga ao amanhecer.

Não sei quem és. Mas, a quatro árvores pelo meio, foste companhia perfeita para tão insutentável dor. E agora foste-te embora. Era essa a tua missão: saber que não haveria lugar para ti se tivesses decidido ficar.
Com amor.
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny

6.4.05



Queria riscar todas as fronteiras dos mapas até abrir um rio. Banhar de verde as civilizações de luz apagada. Corre dentro de mim esse líquido, deitado nas margens chamo-lhe profundo desejo.
Queria amarrotar o mapa, fazer tranças gaulesas nos países pintados a vermelho. Baptizar de sol nascente os magros-de-fome que morrem sem nome. Queria sal nos rios, plantar flores e árvores nos filhos do Oceano Índico. São irmãos-de-mar os inimigos de guerra.
Dobrar os mapas em papagaios de papel, arrastá-los para o alto voo, leccionar rodopios com um empurrão.
Há, nos mapas, países que crescem tanto que são obrigados a comer os seus próprios deuses e, pior!, os seus próprios filhos.
Queria riscar todas as fronteiras do globo com a palavras paz até rasgarem: brotarem lagoas com voos rentes de andorinha.
Nas margens, seduzidos pelo imoral odor da água, é mais fácil amar.
Há, nos mapas, países que mingam tanto que se reduzem a uma fome de fuga.
Não seriam os chamados Países em Dias de Vingança se no lugar de arames farpados crescessem mãos dadas de rios, se fôssemos tatuagens de pássaro em alto mar.

Está no papel (e nas assassinas lanças) o que as correntes nunca deviam ter vomitado do mar.