12.4.05

Escrito no Bom Jesus,
para uma menina
que, sem saber, sem querer, sem me ler, me ajudou a superar a dor de uma dor maior.
Fernando Pessoa diz que "a ferida dói como dói/ E não em função da causa que a produziu.". Eu digo que me doía e que ela nem sabia, ela nem me viu, nem lhe reconheço os gestos, a face, as linhas do corpo, mas ela estava lá. Reconhecer-lhe-ia o cruzar de pernas, as calças brancas coladas ao corpo e os óculos com varas de luz, se os visse. Estava lá e ajudou-me sem saber, o que ainda é mais misterioso e banhado de encanto.
Para a sua presença, para a menina-sem-nome, escrevi isto porque a amei violentamente.
A ti desconhecida:

Pediste-me o impossível. No relógio eram ainda zero horas, aquele tempo que pertence a dia nenhum. Entre o teu corpo e o meu há quatro árvores a tapar. Não lhes sei a raça: são só verdes para que a estória se torne mais simples de contar.
- os remos empurram o barco porque batem no fundo?
O impossível e eu fiquei com vontade de to dar.
A água não tem cor, carrega as tintas reflectidas no seu líquido. É verde enquanto as árvores forem mais próximas (e altas) que o escuro, tem vagas de negro para que não esqueçamos que até os troncos, as casas e as aves têm medo. E isso explica por que passa a água a vida a tremer. O puro, o límpido, o transparente teme pela sua vida. Treme.
Restam, nas margens, as rosas, as árvores verdes, as palavras de menina a saltarem à corda nas linhas do caderno: "café-café-lima-limão-sou-uma-metáfora-e-só-digo-que-não".
- porque não servem as velas para os barcos com remo?
E os peixes tremem com elas, movem-se sem ar agarrados às cores que alguém lhes deu e que lhes fogem. Algum deus, algum sol com varinha mágica lhes deu.
Na terra, a própria se encarrega de empurrar os carrinhos de bebé onde, ciclicamente adormecidos (como noites, como sinos), nos deixamos caír em precipícios.
E, depois, os peixes fingem-se de mortos flutuando com passividade à superfície da água. A cor da água é um grande reflexo: dos mundos e do vómito dos peixes. E da cotovia que a rasga ao amanhecer.

Não sei quem és. Mas, a quatro árvores pelo meio, foste companhia perfeita para tão insutentável dor. E agora foste-te embora. Era essa a tua missão: saber que não haveria lugar para ti se tivesses decidido ficar.
Com amor.

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