13.12.06

Breve apontamento sobre a felicidade

Casados há dezassete anos, não sabiam mais o que fazer para experimentar o amor. O filho andava na escola, os dois andavam de trombas no terraço de terra batida e o calendário, cruel e indiferente, andava para a frente sem se cansar. Ambos cansados de flores que secam em jarros, decidiram plantar uma árvore e esperar que desse frutos.

São avós muito jovens. E comem as maçãs colhidas pelos rebentos.

Casados há trinta e sete anos, sabem que o amor não se experimenta, que não precisam de fazer nada. Andam a pé.

13.11.06

Não trouxe nada, esta cadeira já aqui estava, a caneta encontrei no chão e isto branco nem sei se é papel. Dom Texto Sem Mensagem é também sem truques ou intenção. Aceita o nome que lhe dermos e este fim antecipado de quem nem sabe porque veio.

24.10.06

Dois laranjais secos

Da Suécia à Grécia são apenas cento e vinte centímetros.
E, às vezes, o azul de cada um deles mistura-se indecentemente com o outro,
sem diplomacia intermédia, mesmo nas barbas do dono do hotel.
















A doença terminal sonha com um aborto ou com recém-nascidos?
Acorda o corpo prestes a tombar, leva-o pela mão até um espelho e sopra-lhe baixinho ao ouvido:
Olha, era este o monstro que te queria mostrar.
Os que lhe são próximos, que não enxergam nem monstro nem homem, choram Porque não sabem cantar hinos ao amor. Porque, pobres ingénuos, ainda acham que um homem pode morrer.


* imagem: História trágico-marítima; Helena Vieira da Silva (1944)

22.10.06

A pata afiada pela unha desenrola os gatos que já cheiravam a mofo.
Um fio de gato atravessa o buraco da agulha, pronto a tricotar.
É o ócio do novelo, apetece-lhe miaus em renda.

15.10.06

O milagre da mão-invisível
















Foi pedido ao tio zé, campeão europeu de construção de castelos de areia, que construísse uma casa sobre o mar.
Zé, ou tio para os sobrinhos mais próximos, enterrou a pá na areia, encomendou um barco, comprou fato de mergulho, aprendeu a nadar, licenciou-se em ciências marinhas, registou a sua cana de pesca junto das entidades competentes, lambeu um gelado de baunilha, contou duas anedotas aos caranguejos, fotografou a água a espumar-se nas rochas,
foi ver o barco, pagou-o às prestações com oferta dos remos, inventou a grua que levita, sonhou com tijolos de esferovite, concebeu-os em forma de sardinha, vomitou uma posta de bacalhau no restaurante do irmão, vendeu núcleos de ilusão no interior das dunas, sobreviveu a tempestades de areia, publicou um artigo de jornal sobre o assunto, foi lido por trezentas e vinte pessoas, engadelhou-se com uma rede de pesca, partiu para alto-mar,
equeceu-se de levar cimento, projectou o edifício com as coordenadas do pôr-do-sol, enfiou dois dedos na água salgada, levou-os à boca, tombou de encantamento porque se apaixonara por uma estrela.
Não pensou uma segunda vez: recusou.


* Ilustração: Moon and Sea, No. 2; Donna Ciaciarella

13.10.06

A unha do cadáver azul

a pomba pagou ao Estado para dormir no parapeito da janela,
a janela pagou ao arquitecto para ficar no terceiro andar,
o telhado, que anda de mal com o Estado, pagou ao céu para ficar no quinto,
as escadas, fartas do vazio sem passos, pagaram ao senhorio para não haver elevador.

a vertigem pagou ao alcatrão para se atirar pela janela abaixo,
o jornal pagou ao pedinte para tirar a fotografia,

a pomba urinou no jornal
mas a Economia não tinha troco.

11.10.06

Confissões de um Janeiro em Braga

Já não aguento esta cidade. Já me fogem as palavras de aço e é tão infantil a ilusão de as agarrar. Como lego, faltam peças e rodas a estes sempre-mesmos-edifícios.
São demasiados rostos de artifício suspensos nas vagas de ar. Sei que não aguento. Vejo eu, uma criança desesperada (três, quatro anos de desespero) a tentar chamar a atenção da mãe.
A mãe, com sotaque brasileiro, não interessa o sotaque, ignora a criança e discute com um homem que não é pai, um olhar daqueles não pode ser pai. O menino brinca, luta, levanta a voz com deliciosos tiques infantis, os adultos discutem sem nunca se olharem, a criança mexe, abana-se, tosse, brinca. Cresce com os olhos no vestido da senhora que passa.

28.9.06

A senhora que passa e O rapaz que a vê passar

A senhora que passa leva cinco vestidos no corpo porque não sabia qual usar; é a senhora que passa e só por passar mostra-os todos como bandeiras ao vento. um, azul com flores, dois, sóis com vermelho, três, uma risca dourada e vertical, quatro, bolinhas e bolinhas, cinco, saia muito curta por cima das outras todas. perna nua dos joelhos aos pés, perna de neve com passos na lua, é a senhora que passa, que é vista a passar.


O rapaz que a vê passar tem sangue no joelho e inquietação no corpo, é um arrepio, uma música de filme, uma ferida aberta, porque a vê passar. o terceiro vestido é muito decotado, imagina, o primeiro é aberto nas costas, imagina, uma única alça cruzada segura o primeiro, imagina, os outros não sabe, não imagina, não quer saber, porque a inquietação já lhe sobra e o buraco no joelho ainda dói. sangra uma vez pela dor e outra pela profundidade da ferida, a rapaz que deseja a senhora que passa.

19.9.06

A sede é um aquário ao contrário

Em miolos de 2006 um cavaleiro partira o seu violino para purificar toda a espécie vegetal e os grampos que o mantêm suspenso entre a geada e a andorinha sinfónica.
Vivia numa orquestra t3, bateria incluída, porque era alérgico ao ruído dos sinos que ora assinalavam as sete badaladas e três cêntimos, ora anunciavam a morte do manco com o eternamente no coração de sua esposa, filhos e restante família, ora só tocava porque uma cegonha lhe defecava em cima. E por também ser alérgico às penas cinzentas das cegonhas, dormia entre os três contrabaixos e o silêncio - próxima estação: Aveiro - desafinado.
A sua casa era muito frequentada por músicos e por saias que gostam de música e por homens que gostam das saias que gostam de música e, talvez por isso, desconhecia as virtudes das pensões de qualquer estrela e das avenidas do repouso.
Certo dia comprou uma pandeireta só para não parecer mal e roeu as unhas até ao pescoço em dó maior antes que lhe pedissem para tocar.

Em outros-miaus do ano de 2006 sonhou ferozmente com um quinteto de flores, mas depois acordou com miolos de cavaleiro nos dedos e um violino partido no tempo. E levantava-se com os chinelos de algodão enfiados nos ouvidos porque gostava muito de ópera, mas nem tanto. Não é uma atitude de derrota, mas sobretudo uma marcha descalça em defesa da queda do barril de relógios.
Um dia procurou tão obsessivamente um cavalo surdo que lhe saiu uma galinha. Chamou-lhe Opuleta nº 355 avariação contínua, em homenagem a uma coisa qualquer que ouviu na rádio mas já não se lembrava bem, porque também era alérgico aos órgãos das igrejas e ao trote melódico de éguas pardas. Adormecido sobre o infinito lombo da galinha percorreu meio século de sono, o cavaleiro que não sabia partir, e que partiu também a pandeireta com os dentes, em milongas, adágios e trompetes do nobre ano de 2006.

10.9.06

Demência ou Elogio aos patos

E em vez de poetas vieram formigas,
trabalhadeiras,
carregando as palavras às costas
enquanto o poema nu se lavava no lago.

O soldado disparou três vezes com a bisnaga
e molharam-se todos felizes para sempre.

6.8.06

se a beijas na boca e a boca é de ouro,
se a abraças ao espelho e dia é de chuva,
se te sabe a mel todo o mal sem sabor,
se és tu o sonho na ferida dos pulsos,
se gritas como um gato quando lhe queimam a asa,
se não te vêem quando és sangue,
se a beijas nos lábios e ela não sabe,

desconfia,
de tudo.

27.7.06




















Se nos roubam é porque nos querem, iludidos por um desejo de mastigar o outro, aprisionados em investidas cerradas a sorrisos alheios, se nos roubam é porque invejam a técnica do sorriso, têm medo dos ratos.
O ladrão não caminha, desloca-se aos pulos - é o medo de que o chão lhe caia em cima, tem pavor da humanidade, só por isso é filho da puta, só por isso rouba como se desse à luz um coelho. Não sonha, se sonhasse tinha umas orelhas maiores e não passava despercebido, ressona com a consciência em voz baixa, deixa dó, plena consciência da merda que é a cada novo assalto,
uma vontade de lhes escrever,
olá como vai?
na testa. oferecer-lhes uma gravata, torná-los estrelas de rock, pendurar-lhes algemas de prata nas orelhas, estilo brinco de argola, fazer-lhes festas na cabeça em vez de os encher de murros, insultá-los ao contrário.
É urgente confundir os sentidos e roubar toda a gente. Mas ao contrário.
Se nos roubam é porque nos desejam.

3.7.06

Casa










Um homem nasce com tudo, nem lhe deram tempo para pedir, deram com ele assim, sentado num buraco verde de quatro pernas. Casa, livro, roupa lavada. Com a alegria de palhaço, de quem nunca conquistou nada, tudo lhe veio colar-se ao corpo, encontraram-no assim, desolado. Observa a roupa rasgada suspensa no skate, com inveja. Já leu três ou quatro romances dos grossos, páginas de açúcar numa diabetes de vida, balões que não rebentam, encontrou-os numa estante, encontraram-no assim, de mãos erguidas para o céu, súplica por tempestades, pastilha elástica colada ao céu da boca.


* The Isle of the dead, Arnold Bocklin

28.6.06

Se soubesse escrever,
escrevia assim:

História roubada II

Quando tinha 16 anos a Maria decidiu ensinar o cego, o Manuel, a dançar.
Um, dois, três. Olha sem veres para mim. Olha-me sem me veres a olhar-te.
Um, dois, três ais. Caiu-lhe nos braços. Aos 18 anos comunicou às amigas: vou casar com o cego, o Manuel, aquele com quem me vêem passear nos jardins
(flores degoladas na luz de inverno)
com quem me vêem, sem que vos veja, dançar.
Casaram
(sorrisos sinos e brancos azuís de primavera).
Aos 22 anos, o Manuel, o cego, trocou a Maria por uma manca.

D' estas mãos.

9.6.06

Os olhos do outro.














Quanto mais amarrada a boca, maior a urgência de falar. Não são parte do silêncio, os olhos. Brotam dimensões de intervenção onde tudo grita com ternura, órbita na órbita, um no outro com tanta intenção que torna marítima e secular a compreensão, qualquer tentativa vã, este desejo pelo indefinido, a procura de palavras inexistentes, como se na própria definição, no todo definido, vivesse o bicho que infecta e apodrece a vida. É por isso que me olhas, te observo, é por isso e, sobretudo, por não ser isso. Porque é também mais complexo, ou então é nada, todo este desejo que partilhamos na desajeitada carruagem comum.
E nunca me dirás se realmente me olhavas,
tão rápido como eu nunca ser capaz de to perguntar.

* Never-ending train, Neurone Pipero

6.6.06

6.6.6


Dança para mim, George, é sábado de manhã e preciso de mimo, é sábado de manhã e nem um fox-trot, George, dança para mim. Há meninos sem pernas a chorar lá fora, há meninas orfãs que perderam os filhos, ou filhos que perderam os braços e o pai, amor, faz alguma coisa. Estou farta, canta para mim, George, aquela do sinatra que assobias no golfe, antes de cada tacada, aquela daquele filme que não viste porque estavas no golfe, querido. Mas canta na mesma, George. O mundo é tão bonito e tu a deixar que seja mulher infeliz. Arranca-me esta burca de vergonha, George, dá-lhe com os punhos de uma só acentada, como fazes com o whisky, George.
Sabes que há crianças sudanesas que com quatro anos já usam farda? Mata-as, coração, metem-me medo. Ensina-as a dançar, a cantar, mata-as. Ouvi dizer que há paquistanesas que gostam de basquetebol, não deixes, ternura. Hoje é sábado de manhã, leva-me ao deserto, queima essas montanhas de sangue, coisa doce. Não duvides de mim, não sou feliz, leva-me a uma igreja, amor. Sabias que há negros no Brasil, na Alemanha e na Suécia? Faz alguma coisa, George, dança para mim. É sábado de manhã e ainda não te vi na tv, meu fofinho. Sabias que as mulheres palestinianas põem ovos? E não me disseste nada, George?

28.5.06

Lama.






















Tinta para um lado, tela para o outro, não a borro mais a teus olhos.
É a lágrima finita,
é o passado que nos traiu e futuro que escolhemos,
é o último lugar a dois.

* Karel Appel, The Discovery

16.5.06

am Opernring




















autorizar a madeira a arder até ao caruncho, fortalecer o passeio que rebente o engarrafamento das vidas, fulminante ceifada que lhes carbonize a fome. desbloquear as deixas do sonho, afogar os copos em silêncio. abraça-te em mim até as pontes falarem, tatuarem uma árvore na rosa-dos-ventos. encimentar a chama dos rios.

* Det syke barn, Edvard Munch

10.5.06

Áustria




















O Zé é daquelas pessoas fáceis de admirar. Uma janela de honestidade. Zé, ou então José Bento Amaro, irreverente jornalista, insubstituível camarada de redacção.
Não me deixou sair sem enrolar o braço amigo de quem sabe por cima do meu ombro. Sem sussurrar o segredo mais Público de um grande profissional:

Mantém-te fiel aos teus princípios
e àquilo que achas correcto.

Depois foi-se, enigmático, com o cigarro por acender na boca.
E amanhã voo, com o instante a entoar sentido na minha cabeça.

Sim.


* Gartenweg,
Gustav Klimt

6.5.06














sete rios de cegonha em cada olho
seios olhos de lobo em cada mão
cinco cascas de mão em cada ramo
quatro troncos de toca em cada nuvem
três buracos de chuva em cada pau
duas pauladas bem dadas
um morto.


* ilustração: El cielo azul de un luz quieta, Pablo Aizoiala.

26.4.06

Chamada geral


Muito cuidado
porque anda por aí um montanhista à solta,
com uma objectiva afiada
com todos os graus de sensibilidade.
Nasce um novo mito: "O adorável homem das neves". Diz-se que a seus olhos só se vê disto.

6.4.06

Do fundo do sono.

















Sei bola de nuvem a bola de nuvem o que se passa com os pássaros
mas não conto enquanto não me crescerem as asas

Ilustração: Joan Miró

4.4.06

Era uma vez uma sopa rápida, a 4 de Abril.

E viveram todos felizes para sempre entre lagos e guarda-sóis. Na Primavera encurtavam as saias ao ritmo do amadurecimento da flor e, entre sorrisos e suspiros, até se vivia com dignidade. Mas o para sempre começou a demorar muito tempo a acabar, as ervas secaram, os olhos em rugas, o vinho entornava, mãos em cruz, e todos se aborreceram com tanta água e sol. A 12 de Março inscreviam-se no Clube Conservador da Caça à Borboleta e enchiam o edifício dos serviços Prisionais de Asas Flutuantes com milhares de espécies - era um arco-íris violento de se ver.
E talvez por isso, ou talvez por outra loucura qualquer, a 21 de Março logo se revoltavam - os mesmos que foram ferozes caçadores - e se convocava uma magna reunião da qual brotaria a União Internatural de Defesa de Seres Voadores Visíveis ou Invisíveis Feios ou Bonitos. Convocavam-se manifestações, acções de campanha, jornadas de luta clandestina e aguardava-se com inquietação de herói o assalto final ao edifício prisional. Bandeiras coloridas, achas, acordeões, rugidos de leão, anéis de fogo a saltar de orelha em orelha - tudo em cortejo até às portas largas da grande gaiola.
Como se constituísse novidade, portões abertos denunciavam um edifício deserto, descuidadamente abandonado, ocupado por crias de aranha sem meios nem recursos para impor o clima de disciplina desejável em tão sagrado local.
A invasão ingénua limitava-se então a um desiludido abrir das celas e um desfrutar do voo precipitado das borboletas ao som de 'vivas', uivos, gritos de liberdade e de 'não havíamos sido nós a prendê-los'?.
E assim, sempre assim, passavam as Primaveras, todas as Primaveras do para sempre que já era manco e nem tinha Verão.

24.3.06

Euskadi eta askatasuna

Sou uma criança normal que ficou sem braços, não é muito mau na medida em que ainda posso falar, mas para escrever este texto foi preciso chorar, chorar muito até a raiva ganhar a forma de palavra. Não me importo, desde que chore. Os braços só atrapalham, se os tivesse já havia explodido uma bomba de vingança no cessar-fogo. Mas as minhas lágrimas, palavras, nunca ganham forma de bomba. Não me importo. Desde que chore muito, como sempre faço desde o dia em que me rebentaram com a cara. Até nem foi mau de todo, a outros rebentaram-lhe com a vida. A mim não me interessa. Ainda tenho cabeça para mascarar nos sonhos. Ontem sonhei com uma gigante capaz de engolir a paz, encapuçada, sonhei que me engoliu os membros quando abri a porta de um carro, que vi o meu pai a ser despedaçado enquanto as rodas voavam. Não me importo desde que acorde aos gritos durante a noite a chamar pelo pai que já não tenho. Desde que chore, grite tudo. Se tivesse braços dava-lhes com a participação cívica e política, que nem sei o que isso é, mas deve ser inacessível, das que se seguram com as mãos, na ponta de um machado. Mas não tenho, nem me importo porque já nada me importa, mesmo que por mim chorem e me amarrem contra o peito e me enfeitem com ramos de flores. Se tivesse braços arrancava-lhes os capuchos pelas orelhas e ensopava-os de vómito, mas já não tenho, nem me importo, desde que chore, desde que morda panos muito espessos até à asfixia. Não me importo. A propósito o meu nome é Cármen. Pelo menos era, antes de morrer.

Foto: El pais

22.3.06

Elevado ao forte o rosto tudo aguenta. Pensei em brincar com folhas, rasgar tudo verde, amplio esse anel de cimento até cobrir o dedo, sou candidato à presidência do cordão do teu sapato, lido que está o código cívil para te arquear os lábios em u. Elevado ao escuro a espécie tudo chora, mais ou menos vermelho, na rua da porta da praça sem fim do fundo da casa, a minha campanha é escrever banalidades e submetê-las a um dia mundial de uma porra qualquer.

11.3.06

Metro

Tudo foi para ti o que eu não vou escrever. Eras uma raiva à solta num metro cambaleante, para mim Lisboa é essa mancha negra subterrânea das manhãs e dos finais da tarde, onde a meu lado se apaixonam dois restos de razão, talvez o primeiro beijo, não sei, é um beijo ai isso é, uma mão no barão outra a acariciar o braço, amam-se mesmo, para eles Lisboa é mais que este escuro meu, para eles Lisboa é gaivota, um fado malandro na menina dos olhos, para eles Lisboa é outra coisa porque falam outra língua e sorriem de outra forma, para eles se calhar nem é Lisboa, é como se voassem ou nunca os visse, para eles até podia ser Istambul, que se foda desde que se amem, desde que o beijo (ai isso é: um beijo) seja o mesmo beijo, para eles não é estação terminal nem têm que trocar de linha coisa nenhuma, quando a linha é de amor não se troca de linha nem que se mate, para eles é mil vezes ritos de beijo,
viro a cara para outro lado, farto de ver, viro a cara para outras cores, e não é para ti nada do que escrevo, troco eu de linha, este metro é mais quadrado o que torna óbvio que se deve entrar pela janela, mas ela é de vidro e a porta já se fechou, estação terminal vai para lado nenhum, se calhar ainda fujo, não calhou e sigo no próximo, uma acordeão cego pede esmola pela graça de deus, mas como não lhe acho piada nenhuma desvio-me e abano os bolsos como quem não tem dinheiro, queria a espuma o mar, talvez se o metro fosse mais fundo tivéssemos que usar máscara, equipamento de mergulhos, todos os dias seriam uma nova navegação e as espécies que se encontram no metro não fossem ausentes de olhar, e nada disto é para ti, porque tu és tudo o que não escrevo, porque eles que sabiam o que era o amor já se foram para lá da estação terminal, para lá da vida, fazer amor, talvez só em beijos, talvez levassem o barão para poderem segurar a vertigem, não sei, eles que sabem do amor é que sabem, porque quando vejo a luz são cem metros até um prédio verde e lá se vai a luz outra vez, e vêm os computadores e as lâmpadas, se amassem até fazer luz não precisávamos de luz, e preciso que Lisboa seja mais, e nada disto foi escrito para ti. Tu, que me lês, se me lês, és tudo o que não sou capaz de escrever.

15.2.06

Dinamarca

Descolar o galego, aterrar no catalão. Vou inventar mais sete mares para arrancar a timidez do chão. Imaginando com neve oral, dá-se com a língua nos dentes plantando um jardim em francês, adubo de Barcelona, segunda mão em tesoura castelhana, três ou quatro aviões na diagonal leste, larga semente, espalha sonhos suados de estrume chinês, uma pá com terra, dois regos de luz, sotaque lusitano avaliando a evolução da empreitada, 'esta merda não cresce?', 'puta de neve, por que não é vegetal?', um regador com Sagres. conta quilómetros. Ignorando os sabres do dia, o preço de cada bala, brotarão árvores verdes?

Dinamarca foi escrito em Andorra pensando em Portugal.

16.1.06

Sobrevivi aos lábios, voltei ao mar que amo.
Ela disse pára, disse está errado, disse não mereces, disse não devemos, não disse nada, ensopou-me de fantasia, mordeu-me o beijo, disse já chega, disse olha o que fizemos, afundou-me em círculos de laranja perfeita, disse já chega, disse já chega, eu adormecido elefante bebé, disse não está certo, língua, barco à vela a furar o céu, estrela cadente, disse ainda te estou a magoar mais, disse deixa-me ir embora, língua, não disse nada, eu morango anestesiado, eu guerrilheiro rendido, eu perdido nos lábios que sobreviveram aos meus.
É um só sol, uma única flor, voltei do mar que amo.


Figura: Le bateau atelier, Claude Monet