30.4.07

aquele primeiro de maio

Um.
O elefante já não toca o sino.

A águia já não afia o bico no caroço da maçã.
O leão já não paga a salada de zebras por débito bancário.
O nosso circo sofreu uma profunda reestruturação.
O nosso sincero pedido de desculpas.

Dois.
Compre o sol para os óculos que o nosso presidente hoje usa, se faz o favor.
Se amanhã chover, venda-o. O nosso presidente paga com decretos de lei mágicos.
Um mosquito para cada candeeiro, uma arca de sal para conservar as ideias, três quilos de anzol para domesticar o peixe.
E outras soluções mais reais. Sete dias para cada semana, uma cruz de sangue para cada dia.

Três.
É só seguir as ambulâncias amarelas.
Há uma praça com patos desligados à corrente de rio, época de seca, uma feira de cebolas a interromper o fado todas as quintas à tarde, uma ponte de mel, passas o ferrão das abelhas e estás na zona propícia em acidentes.
Depois é só seguir as ambulâncias amarelas.

Quatro.
Sete mais noite igual a sombra mais luz igual a mais consciência menos trevo igual a sorte menos direitos menos seis igual a solidão mais ninguém mais nenhum mais zero mais muro mais tecto mais luz mais porta igual a casa menos o resto menos os sonhos mais sexo menos género igual a profunda desigualdade social.

22.4.07


















Um dia vais olhar-me tão fundo nos olhos que reconhecerás a lua.


Pintura: Ashes (1894), Edvard Munch.

17.4.07














Na Assembleia do Inverno, ocorrência rotineira do Dia da Árvore, as nuvens carregadas de escuros e os trovões de luz continham-se para não aplaudirem em demasia as propostas apresentadas. Cada explosão de palmas significa tempestade, de imediato atribuída ao buraco do ozono que, cada vez mais alvo de documentários, já não tem noites de sossego. Para todos os efeitos o buraco dormia, há que bloquear o entusiasmo.

Um aparatoso e bem conjugado jogo de espelhos transformava três ou quatro nuvens pingadas, mais uma ou outra faísca de relâmpago, numa assembleia infinita. Sobre a mesa, ideias de grandiosidade. Pequenos heróis em auto-elogio, o reflexo traidor, combinado vegetal de multiplicações várias, voto anónimo de braço no ar, viva a Assembleia, viva o debate arrogante do pré-decidido.

Este ano, atacamos em Setembro. Ainda há gente nas praias, surpreendemo-la por todos os flancos, raios de zanga no epicentro do mar, tempestades de vento no miolo da areia, nuvens intactas nas copas das árvores, um sambinha de chuveiro para todo o planeta. Satisfação geral, unitária, quadricular. O silêncio do zelo. Também não gostamos quando o sol se distrai e nos corrompe o Natal com temperatura fora-do-prazo. O cinzento tem um custo. Deixemos a planta florir, por agora.

Uma ala enorme de multidão espreita o relógio ao mesmo tempo, é o próprio orador a sentir que se faz tarde em reflexo. E, porque anoitece, há que ceder a sala aos elementos da Assembleia do Amanhecer. Retiram-se os espelhos, porque esses são realmente muitos.



Pintura: Rainwater dreaming, Moses Fry

7.4.07

Bilhete válido para a carruagem número 531















É uma solução digna como outra qualquer. Quando se sente triste, concentra-se na felicidade das pessoas à sua volta. Espera um comboio, o seu momento reduz-se à espera de um comboio. É uma situação com muitas pessoas à volta.

Concentra-se, quando consegue.

Óculos de sol rasgam uma cara a sorrir, cruza a perna como quem adormece numa praia de espuma. Uma rosa, duas gerberas, dentro de momentos vai passar uma carruagem qualquer, é só uma máquina com ar bélico, aspecto de quem vai descarrilar a qualquer momento e bater em alguém, porque inventam frentes com faróis zangados; certo dia estava a brincar, canta a criança, eu caí e fiz um arranhão no nariz… na peeernnnaaaa.

Concentra-se, às vezes consegue.

Dentro de momentos. Deu entrada na linha um. E, porque deu entrada, ele entrou também. Um Magalhães de chapéu azul, nome escrito com letra à máquina no leitor de faixas, ouve música. Saco com letras chinesas, entre pernas abertas e chinesas de um chinês. No tecto, um espelho escuro reflecte pedaços de uma mulher a ler o jornal, um saco azul quase atropela uma cabeça, chuva estranha a do interior, um rio na margem direita da linha, árvores namoram o rio, uma ponte que me faz imaginar-te sempre que passo por aqui, o teu cais com o qual tanto sonhei, as campainhas que nunca param, no reflexo outra mulher com a mão suspensa nas preocupações da cabeça.

Concentra-se mas às vezes não consegue.

Uma mala de mulher com pele de animal. Parece que ainda lhe vejo as patas, ouço-lhe os gritos, quem o desventrou ainda não enriqueceu. Menina de quatro anos, tranças na coroa do cabelo, loura, vai adormecer no colo do pai. Dentro de momentos vai dar entrada nos braços do pai número um a carruagem oriunda da paz total de menina pequenina com destino ao sono. Efectua paragem nas pontes, nas nuvens capitais de distrito do céu e em todos os sonhos apeadeiros do tempo.

É uma carruagem com muitas pessoas, mas todas diferentes – como pode ele descobrir o denominador comum da felicidade? As mais felizes, se calhar, já adormeceram, o jornal é uma enciclopédia de tragédias, a música do Magalhães é adornada pelas perguntas da avó. Está ali um rapaz, nove bancos à frente, que já tinha visto no metro. Era mais feliz quando tinha a idade e o penteado dele. É para ele que escrevo, para mim quando era como ele. A menina da guitarra não mais foi vista, sentou-se numa carruagem diferente, ela que faz parte deste texto desde o início, mas ninguém o sabia ainda. Comprou bilhete ao mesmo tempo que eu, afinou a guitarra a meu lado, guardou-a depois.

O texto era mais bonito se ele não estivesse triste, ou conseguisse concentrar-se na solução digna. A menina adormeceu, as tranças já podem ser mesmo coroas se ela sonhar com isso. Concentração de fumadores junto à entrada do bar, inalação em movimento. A calçada reflectida no espelho. Azulejos com a palavra retrete posam para a máquina fotográfica de quatro adolescentes histéricas. Museu de carruagens antigas – paga-se para andar? É só um homem, vai perder a paciência e a concentração com coisas banais: ervas, casas solitárias, fumo a sair da chaminé, barulho de copos plástico a serem partidos, joelhos, saias acima dos joelhos, dores de cabeça, ligeira vontade de dormir. Que guardará a avó no saco? Por que continuam verdes as cortinas? Quanto teria que pagar o homem rico para viajar sozinho na carruagem? Para que servem as perguntas?

Quando se concentra nas pessoas à sua volta, fica mais triste. Desiste.