29.1.07

A menina do quadro







Na cama também nasce uma flor, despenteada no cabelo, de amanhecer espantado nos olhos. Não é ter sono, é a varanda virada para os barcos da noite. Num escuro tão denso que cada onda é um problema auditivo e o oceano um violento ruído de sal. Mesmo assim, adormece. Cabeça apoiada à esquerda, suspensa no travesseiro alto, à espera que, lá em baixo, junto ao estremecer da parede da janela, passe o último comboio para a madrugada. Mesmo assim, não é seguro que durma inteira. O corpo descansa por turnos e é a vez dos olhos se abrirem e os lábios também. O bater de dentes porque a carruagem já atravessou o frio a 60 à hora e deixou-lhe o corpo a gemer de viagem. Mudança de turno. Mesmo assim, não é seguro que tenha acordado sem excepções. É a vez das mãos tactearem o espaço, três palmos à esquerda, do lado onde melhor assenta o rosto, encontra a boca traçada na linha imaginária ligeiramente diagonal à sua. É doce, porque provou. E mesmo assim dorme e mesmo assim é seguro que beije.

18.1.07

sopra-lhe ternura e desliga

Atravessam a rua com o dobro dos passos porque, para além das quatro pernas, amam-se.

Experimenta o espasmo,
espalha o espanto pelo corpo
como é galopante a espera.

Expira o fumo para uma mesa sozinha
sobra-lhe voz para a certeza no telefone:
dois passos num só
caminham em silêncio para uma chave.

Chegam ao outro lado da rua como o desejo nos vinte dedos da mão. Porque, para além dos dois braços cada, sabem que são quatro.

3.1.07

















é minha ou tua a saliva que largo no travesseiro
pelo teu peito sobem temperaturas de espanto
agora que a luz é opaca e nos refugiamos na sombra um do outro
até que amanheça uma sombra única antes de adormecermos
ou que duas almas iluminadas pela força motriz
olhos nos olhos
sejam duas flechas sem descanso.

o caminho arrepiado de lábios, saliva é do beijo dos dois.

o não saber se é um acordar ou se ainda nem adormecemos
são estrelas ou sol quem bate à janela para entrar
entrelaçados com nós de braço nos braços, não abrir
mas somos marinheiros que abandonam o barco para nadar em céu aberto.



Pintura: Henri de Toulouse-Lautrec; The Bed.