2.8.11

Chamada para os maus poetas (Fogwill)


Precisa-se de maus poetas.
Boas pessoas, mas poetas
maus. Dois, cem, mil maus poetas
precisam-se para que rebentem
as dez mil flores do poema.

Que neles viva a poesia,
a desnecessária, a fútil, a subtil
poesia imprescindível. Ou o in-
verso: a poesia necessária,
a prescindível para viver.

Que floresçam dez mãos no pântano
e na cova um Ele, um Juan,
um Gelman como elefante a abarrotar
de vidro partido,
ou um Rojas desfeito, mendigando
à Rainha de Espanha.

(Agora Espanha
voltou a ser um reino e tem Rainha
e Rei do reino. Espanha é um tabuleiro
de bispos politizados e peões
recém-comidos: à direita, negros,
paralisados, fora-de-jogo).

E aqui há torres de borracha, bispos
politizados e mulheres-polícia
a vigiar a casa.

À casa do homem,
por fome, correm todos, saltam
do quadrado, e são comidos.

Tudo isso abunda: faltam os poetas,
os mil, os dez mil maus, cada um
armado com o seu livro de merda.
Faltam os seus ensaiozinhos e romances em preparação.
Ah… e os curricola,
e as suas dez mil applys nos faltam.

Não é a morte do homem, é uma
grande ausência humana de maus poetas.
Que floresçam cem milhões de tentativas abortadas,
releituras, perturbações, fólios de cartão, ilustrações
de gente amiga, jantares com gente amiga,
exegeses, escólios,
tempo perdido como tudo.

Precisa-se de poetas gay, poetas
lésbicas, poetas
consagrados à questão do género,
poetas que cantem a fome, o homem,
o nome do seu bairro, a arte e a indústria,
a estabilidade das instituições,
a camada de ozono, o buraco
da revolução, o orifício azedo
das mulheres, o latido inaudível
do Pentium, a guerra
entendida como continuidade da política,
do comércio,
do ócio de escrever.

Precisa-se de Betos, Titos, Carlos
que escrevam poemas. Alejandras e Marthas
que escrevam. Nomes para poetas,
anagramas, pseudónimos e contra-senhas
para a chat room do verso precisam-se.

Uma poesia aqui do cirurgião nas calçadas.
Uma poesia aqui da mendicidade nas instituições.
Uma poesia dos salões de leitura de versos.

Uma poesia pelas ruas (venham ver os
versos pelas ruas…)

Uma poesia cosmopolita (subam para ver
os versos na Web…)

Uma poesia de amor actualizado (desçam para ver
poesia na manjedoura do amor…)

Uma poesia explosiva: etarra, ética,
politicamente equivocada.

Nos papéis, nos canais culturais
por cabo, nas telas e nos monitores,
nas antologias e nas revistas
e nos livros e nas emissões clandestinas
de frequência modulada procura-se
poetas e maus poetas:
grandes poetas celebrados pequenos,
poetas notórios, plumas iluminadas,
homens triviais, miméticos,
deteriorados pelo álcool,
descerebrados pela droga,
hipnotizados pelo sexo,
idiotizados pelo rock,
odiados, amados pela gente aqui.

Nas habitações procura-se.
Num bar, nos flippers,
nos minutos de descanso na oficina,
entre duas aulas de gramática,
na classe média, nos bairros
vigiados procura-se.

Haverá na tropa?
Nos balneários, nos banhos públicos
que começaram a construir?
Nos certames de versos?
Nos torneios de mini-futebol?
Debaixo do sol quieto?
A sós com a sua língua?
A sós com uma ideia repetitiva?
Com gente?
Sem amor?

Não é o fim da história, é o início
da histeria lingual.

Tudo começa e nasce de uma necessidade forjada na língua.
Falsifiquemos o desejo:
Preciso de ti, bebé.
Para começar preciso de ti.
Para necessitar, peço-te
esse minuto de poesia de que preciso, tolo:
quero que me devolvas o ritmo de
um poema errado,
que me acaricies com as suas quebras,
que me perturbes a mente com outra ideia banal,
e que me banhes todo com a trivialidade do mediano.

E a meio do caminho, no começo
da comédia terrena, quero viver
a insanidade e a necessidade
de um sentimento falso.

Precisa-se de novos sentimentos,
novos pensamentos imbecis, novas
propostas para a mudança, causas para
temer, para ter
aqui no sul.

E até Espanha é um mosaico
de formigas orientais:
romenas, tunisinas,
suecas à sombra de um Rei.

Riamos do Rei.
Da sua fealdade.
Da sua fatalidade.
Da Sua Graciosa Realidade.

A realidade é um sonho partilhado:
A realidade de Espanha
é a sua vigorosa língua pronunciando o eñe
e a sua manchada espada pronunciando a ordem
do capital e da sintaxe.

Ai, língua:
afasta de mim este caderno de prosperidade
cravado na tua virilha,
saturada de chips, e cobre
as nossas feridas com o bálsamo dos maus poemas..!


Fogwill, llamando por los malos poetas

(tradução mais-ou-menos livre a partir de uma Edição Eloísa Cartonera, 2008)


1 comentário: