7.4.07

Bilhete válido para a carruagem número 531















É uma solução digna como outra qualquer. Quando se sente triste, concentra-se na felicidade das pessoas à sua volta. Espera um comboio, o seu momento reduz-se à espera de um comboio. É uma situação com muitas pessoas à volta.

Concentra-se, quando consegue.

Óculos de sol rasgam uma cara a sorrir, cruza a perna como quem adormece numa praia de espuma. Uma rosa, duas gerberas, dentro de momentos vai passar uma carruagem qualquer, é só uma máquina com ar bélico, aspecto de quem vai descarrilar a qualquer momento e bater em alguém, porque inventam frentes com faróis zangados; certo dia estava a brincar, canta a criança, eu caí e fiz um arranhão no nariz… na peeernnnaaaa.

Concentra-se, às vezes consegue.

Dentro de momentos. Deu entrada na linha um. E, porque deu entrada, ele entrou também. Um Magalhães de chapéu azul, nome escrito com letra à máquina no leitor de faixas, ouve música. Saco com letras chinesas, entre pernas abertas e chinesas de um chinês. No tecto, um espelho escuro reflecte pedaços de uma mulher a ler o jornal, um saco azul quase atropela uma cabeça, chuva estranha a do interior, um rio na margem direita da linha, árvores namoram o rio, uma ponte que me faz imaginar-te sempre que passo por aqui, o teu cais com o qual tanto sonhei, as campainhas que nunca param, no reflexo outra mulher com a mão suspensa nas preocupações da cabeça.

Concentra-se mas às vezes não consegue.

Uma mala de mulher com pele de animal. Parece que ainda lhe vejo as patas, ouço-lhe os gritos, quem o desventrou ainda não enriqueceu. Menina de quatro anos, tranças na coroa do cabelo, loura, vai adormecer no colo do pai. Dentro de momentos vai dar entrada nos braços do pai número um a carruagem oriunda da paz total de menina pequenina com destino ao sono. Efectua paragem nas pontes, nas nuvens capitais de distrito do céu e em todos os sonhos apeadeiros do tempo.

É uma carruagem com muitas pessoas, mas todas diferentes – como pode ele descobrir o denominador comum da felicidade? As mais felizes, se calhar, já adormeceram, o jornal é uma enciclopédia de tragédias, a música do Magalhães é adornada pelas perguntas da avó. Está ali um rapaz, nove bancos à frente, que já tinha visto no metro. Era mais feliz quando tinha a idade e o penteado dele. É para ele que escrevo, para mim quando era como ele. A menina da guitarra não mais foi vista, sentou-se numa carruagem diferente, ela que faz parte deste texto desde o início, mas ninguém o sabia ainda. Comprou bilhete ao mesmo tempo que eu, afinou a guitarra a meu lado, guardou-a depois.

O texto era mais bonito se ele não estivesse triste, ou conseguisse concentrar-se na solução digna. A menina adormeceu, as tranças já podem ser mesmo coroas se ela sonhar com isso. Concentração de fumadores junto à entrada do bar, inalação em movimento. A calçada reflectida no espelho. Azulejos com a palavra retrete posam para a máquina fotográfica de quatro adolescentes histéricas. Museu de carruagens antigas – paga-se para andar? É só um homem, vai perder a paciência e a concentração com coisas banais: ervas, casas solitárias, fumo a sair da chaminé, barulho de copos plástico a serem partidos, joelhos, saias acima dos joelhos, dores de cabeça, ligeira vontade de dormir. Que guardará a avó no saco? Por que continuam verdes as cortinas? Quanto teria que pagar o homem rico para viajar sozinho na carruagem? Para que servem as perguntas?

Quando se concentra nas pessoas à sua volta, fica mais triste. Desiste.

6 comentários:

  1. Lido, relido e lido outra vez. É a paixão pelas tuas palavras que continua a crescer. Enquanto os comboios passam.

    Abraço

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  2. Quem já não se perdeu numa viagem dessas? :)

    Beijinho*

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  3. Olá querido Silvio...
    Gostei muito de seu texto, de seu blog enfim...tanto que fiz uma colinha no meu, mas com todos os devidos méritos a você...
    Desculpe pegar sem lhe falar mas adoraria receber sua visita em meu flog.
    Gostei muito...
    Abraços e uma linda quinta.

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  4. estive a jantar à pressa e diziam: parece que vais apanhar o comboio. e vim! lugar à janela, por favor!


    um beijinho.

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  5. « Hoje senti que o rumo a seguir levava para longe.»
    Talvez para me perder numa viagem da mesma carruagem!

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  6. gostei muito, é como ler um sonho.

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