27.10.05

País

No país onde as árvores saltam e os lobos estão pregados ao chão nunca nevou.
Todos os animais de quatro patas abanam a cauda e, às vezes, ficam sem pêlos - nas mais demorada visitas do vento. Dos pêlos soltos fazem-se cadernos mas as árvores nunca escrevem. Preferem as cantigas dos saltos à corda e, no Verão, o calor dos casacos de cabedal.
Às vezes choram e lá cai uma ou outra carta de amor.
Há para lá também muitas ovelhas que, por questões éticas de higiene, largam sempre as suas caganitas junto aos troncos dos lobos. Faz pena à vezes ver a apocalíptica chuva de dentes que, invariavelmente, ocorre antes de cada tempestade de uivos.
Os pássaros-bebé, com ninho nas unhas dos lobos, erguem a cabeça para o céu pilriando inveja das cobras-voadoras.
Limitam-se a comer as cartas platónicas que, não raras as vezes, caiem no vazio. Isso de as comerem é um quase-sonhar com o bico. Piu!

De longe a longe há um furacão que vem do mar. Chama-se homem, tem consequências devastadoras porque mata sempre aos milhares, mas é em tiros para o ar que o fenómeno natural é especialista. Uma mancha de cobras morre, caindo como cadáveres e enrolando-se no pescocço dos lobos. Há bichos que têm tantas víboras no pescoço que mais parecem aviões prontos a descolar. Sonham com isso. Antes que o vento chegue e limpe tudo, como sempre faz. Já está. Mas só de cinco em cinco anos aparece um homem, o que permite que os répteis se multipliquem a um ritmo suficientemente eficaz para que tape o sol.

Sempre que uma flor brota, começa a chover e o problema fica resolvido. Morte por afogamento. Dentro dos rios vivem os cães, para se protegerem dos fetiches das árvores. Gostam de animais puras, as raízes famintas. E os cães não sabem do que gostam, por serem descendentes da transparência.
Sempre que há um rugido é hora do recolher obrigatório das sombras e o dia fica branco. Tão iluminado que tudo cega. Dura meia-hora. E é o tempo que os lobos ganham para se fingirem livros, vagueando do buraco em buraco e dando marteladas de picareta nas árvores.

2 comentários:

  1. Na prosa, como no poema: literatura profunda, tocante, de uma simplicidade extremamente complexa, de uma complexidade extremamente simples... E bela!
    Abraço grande, Sílvio

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  2. a imaginaçao de uma pessoa, por vezes, tem de ser estimulada!!! e de que maneira....

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