
Sou uma criança normal que ficou sem braços, não é muito mau na medida em que ainda posso falar, mas para escrever este texto foi preciso chorar, chorar muito até a raiva ganhar a forma de palavra. Não me importo, desde que chore. Os braços só atrapalham, se os tivesse já havia explodido uma bomba de vingança no cessar-fogo. Mas as minhas lágrimas, palavras, nunca ganham forma de bomba. Não me importo. Desde que chore muito, como sempre faço desde o dia em que me rebentaram com a cara. Até nem foi mau de todo, a outros rebentaram-lhe com a vida. A mim não me interessa. Ainda tenho cabeça para mascarar nos sonhos. Ontem sonhei com uma gigante capaz de engolir a paz, encapuçada, sonhei que me engoliu os membros quando abri a porta de um carro, que vi o meu pai a ser despedaçado enquanto as rodas voavam. Não me importo desde que acorde aos gritos durante a noite a chamar pelo pai que já não tenho. Desde que chore, grite tudo. Se tivesse braços dava-lhes com a participação cívica e política, que nem sei o que isso é, mas deve ser inacessível, das que se seguram com as mãos, na ponta de um machado. Mas não tenho, nem me importo porque já nada me importa, mesmo que por mim chorem e me amarrem contra o peito e me enfeitem com ramos de flores. Se tivesse braços arrancava-lhes os capuchos pelas orelhas e ensopava-os de vómito, mas já não tenho, nem me importo, desde que chore, desde que morda panos muito espessos até à asfixia. Não me importo. A propósito o meu nome é Cármen. Pelo menos era, antes de morrer.
Foto: El pais