15.10.08

Inédito - Capítulo Um

PROCURA-SE DELEGADO COMERCIAL PARA ESQUECER A VIDA
MÁXIMA URGÊNCIA


Urinou num vaso chinês, abrigado por um quadro renascentista e caiu para o lado. Os médicos do hospital ainda não sabem dizer se é finalmente desta que morre, está em fila de espera para a triagem. Mas só nas alucinações do choque hipovolémico: a ambulância ainda não chegou.


A ambulância tem a bandeira de um país oco e é conduzida por um cidadão comum, licenciado em engenharia eólica. Está bloqueada no trânsito, carrinhas do pão estacionadas em segunda via, rotativos ligados com gemidos.


- Esta emergência não traz bons ventos nem boas marés.
- Cala-te e acelera!
- Para onde, para cima deste camião? Esse leva bons elementos e cerveja aos pontapés…
- Cala-te e espera!


As ventoinhas gigantes, pomposas instalações nas Serras, são geridas pela energia alternativa de um pedreiro, afilhado do presidente da junta, e por dois licenciados em filosofia do século onze, portanto: engenheiros.


Urinou não. O líquido urinou-o a ele. Aguentou, aguentou, só mais um bocadinho que já fala com o senhor director, esperou, esperou, o senhor entrevistador já deve estar quase a chegar, resistiu, resistiu, rins a gritar com facas, resistiu, são só mais uns vinte minutinhos e já está, o senhor consultor mais não demora, e caiu redondo no chão com máscara de incêndio para não se afogar na poça líquida. Urina não: medo.


O socorrista aplaude com alegria. O engarrafamento pulverizou-se em menos de quarenta minutos e, mesmo que já morto, ainda apanhamos a vítima quentinha. É sempre muito pragmático nessas coisas, formado na faculdade de Belas Matemáticas só arranjou vaga profissional nas tabelas de emergência médica. O socorro é uma soma invertida de equações, a vida é como uma tabuado, mas mais finita. É um bom profissional. Os números, lá estão: 20% dos casos com sucesso, só 80% de falecidos a suas mãos. Um sucesso.


O condutor da rosa-dos-ventos desfia-o:

- O Joãozinho foi para a escola e levou seis bananas, cinco caíram com ele na antecâmara da sua milésima entrevista de emprego, uma ficou suspensa no ar. Apesar da queda de Joãozinho, ele queria fazer chichi mas não teve tempo. Quantas bananas pode comer o Joãozinho, se não estiver morto? Quantos Joãozinhos vão conseguir emprego na empresa de distribuição de bananas? E quantas bananas podem comprar esses meninos com a miséria de salário que lhes propõem?
- Cala-te, ele recupera!


Não se chama João este homem no chão. Agora repousa sobre uma toalha humedecida colocada debaixo do seu corpo pela telefonista-secretária-porteira-gestora-de-recursos-humanos-malabarista-economista que agora rega as plantas enquanto assina uma papelada.




* ilustração: Elizabete Flores

5 comentários:

  1. Muito bom! Espero os próximos capítulos:)

    ResponderEliminar
  2. Belo texto!
    Só tu para conseguires escrever coisas tão magníficas...

    Abraço..

    ResponderEliminar
  3. Caro amigo-companheiro-palhaço-escritor-dançarino-jornalista-tecnico-de-mudanças-de-moveis-arquitecto-de-palavras-desenhador-de-sonhos-jogador-de-cartilhadas...
    É sempre bom voltar aqui e ler um texto teu...
    Um forte abraço..

    ResponderEliminar
  4. Que lindo teu blog Adar com um texto maravilhoso. muito boas, mo' gostou muito, da mesma maneira que o blog, obrigado muito.

    ResponderEliminar