30.1.04

Sereia

LINDA é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
— quem os pode enxugar
devagarinho com a bôca,
ai!
com a bôca, devagarinho...

Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
passuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios...

Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...

Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.

Cecília Meireles

22.1.04

Lobo da minha vida

"De bata nos joelhos via a cidade iluminar-se. Os pombos emigravam para o telhado do anúncio Sandeman, um homem de chapéu e capa, com um cálice de vinho do Porto. Na minha opinião, adquirida pelos cinco ou seis anos de idade, nunca existiu nada mais bonito."
António Lobo Antunes

15.1.04

plano de fuga

uma vez que fui eu próprio a começar esta guerra contra os morcegos diurnos, a encher o copo e a dar a primeira golada serei o primeiro a saltar
os outros não concordaram e taparam-lhe vias de respiração e canais comunicativos com agulhas eléctricas, decisão portátil que havia de lhes trazer um problema: não tinham nenhuma extensão até ao interruptor da medicina alternativa
sem poder falar, Dioniso Orgânico, engendrou um plano hobbesiano para ser o único a cair no poço da fortuna: levantou o braço e mergulhou-o num movimento ascendente
os outros não perceberam, acenaram negativamente, e deixaram-no cair.
(a porta do alçapão fechou e evaporou-se no alcatrão vermelho)

5.1.04

Arriére Vermine!...

sou um tubarão com medo de vir a ter medo do escuro, como os que têm medo do medo que eu possa vir a ter no caso de ter medo de ter medo de vir a ter medo do escuro que, por sua vez, tem medo de vir a ter medo do medo que os outros têm do medo que eu possa ter dele.
um tubarão-medo com medo do escuro. e dos medos do escuro e do próprio medo do tubarão.
Porto Croft não é mau,
mas Chival Reagal 12 anos faz-me melhor.
tenho medo de nunca vir a ter medo de ter medo de alguma coisa que possa meter medo a todos, menos a mim. tenho medo de ter medo de nunca vir a ter medo.
para a próxima bebo água. tenho medo que alguém tenha medo que não haja próxima.
para a próxima não bebo nem escrevo.

medo do medo do medo.

Comunicado (ou Ecos de ondas nazarenas)

O Sindicato das Sete Saias da Nazaré em estrita colaboração com a lua reflectida no mar por volta das vinte e três horas e quarenta minutos de uma noite primeira anunciam ininterruptamente:
“há chambres, há rooms”.
A Irmandade quase-bracarense que fazia malabarismos com gargalhadas e marcava presença no evento, contra-argumentou:
- é mais uma Imperial se faz o favor!

(e o 3 foi-se embora tristonho. Os pescadores, que não brincam em serviço, mandaram de imediato o 4 substituir o tal 3 dando-lhe ordens para que se colocasse imediatamente a seguir ao 200, ficando 2004. Hum... números, quem os percebe?)

O amor permanece.